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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A Luz da Vida: Discurso de Jesus sobre os Olhos


  
Hoje nos deteremos na análise do discurso de Jesus sobre os olhos conforme registrado em Mt  6:22-24.
A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz; Se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão grandes serão tais trevas! Ninguém pode servir a dois senhores; porque, ou há-de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamon.
O texto bíblico é resumido. Não conhecemos todos os pormenores e nem mesmo o contexto em que muitas frases foram pronunciadas. Parece até mesmo haver um truncamento, uma ausência de sentido na passagem do versículo 23 para o versículo 24.
Temos que imaginar esse contexto levando em conta o que se passava na época, os discursos dos fariseus e as respostas dadas por Jesus. Temos que considerar também o cronista, qual o foco de quem fez o relato. Hoje não vamos nos deter no contexto, vamos isolar o relato do evangelista e considerá-lo em um contexto atual.
Jesus começou dizendo que os olhos são luz ou trevas do corpo, ou melhor, da vida.
É claro que os cinco sentidos são as janelas por onde entram as informações que contribuem para formar as sinapses e compor o nosso cérebro. E cérebro aqui não é a massa cefálica, mas o conjunto de informações que ela contém. São as relações que estabelecemos entre essas informações e a partir dessas informações.
A partir das informações físicas tais como o som, a luz, as cores, as sensações de quente ou frio, o perfume ou o seu oposto, o azedo, o doce, o salgado e outras informações, o cérebro se prepara para constituir a nossa personalidade com relação aos aspectos físicos da vida.
 Essa constituição também afeta a nossa vida relacional. Por exemplo: uma pessoa gosta de um perfume que irrita a outra pessoa. Um cônjuge gosta de comer alguma coisa que o outro detesta. Há pessoas que têm critérios para se vestir com elegância enquanto outras não se dão conta disso e, às vezes, acabam andando de modo não convencional e servindo de gracejos para os outros. Se essa pessoa é o seu cônjuge isso deve lhe incomodar também.
Tudo isso é produto das informações que chegaram ao cérebro através das mães, dos pais, dos amigos e do convívio social. Enfim, através dos sentidos.
Pensando na nossa constituição intelectual suponho que sejam os ouvidos e os olhos que mais influência exerce em nossa personalidade. Em um primeiro momento eles trazem informações que constituem o nosso cérebro, que produzem as sinapses e fornecem elementos que comporão nosso arcabouço intelectual. Depois eles passam a serem as fontes de informações e, ao mesmo tempo, passam a ser dirigidos por nosso cérebro. São levados a olhar e a ouvir o que interessa ao cérebro. Tornam-se escravos do cérebro, comandados por ele. Olham na direção que o cérebro quer que olhem, apreciam o que o cérebro apreciem e ouvir o que o cérebro quer que ouçam. Valorizar somente o que o cérebro valoriza.
Não esqueçamos que cérebro aqui não é massa cefálica, é o conjunto de informações, é o produto da nossa educação formal ou informal. Cérebro em nosso texto de hoje é um produto social.
Por isso Jesus disse que os olhos são luz ou trevas da vida. Eles refletem a educação que nosso cérebro recebeu e as informações que foram guardadas como importantes. Nesse sentido os olhos são reflexos do caráter da pessoa.
Eles veem o que o cérebro considera importante. Eles focalizam o que a pessoa está acostumada a focalizar. Eles buscam o que a vontade determina, mas a vontade foi educada nesse contexto de informações trazidas por eles mesmos para o cérebro.
Há um movimento constante de ir e vir de informações através dos olhos. Essas informações são filtradas e valoradas pelo cérebro com base no substrato de informações que já possui e sinapses sociais que construiu.
Os olhos (os órgãos dos sentidos em geral) não distinguem o que o cérebro não consegue distinguir (luz e trevas podem ser iguais para os olhos, se estiverem desconectados do cérebro), feio ou bonito é uma questão de educação ou de preferência.
Um matemático se encanta com a simetria, com as regularidades, com os acordes harmoniosos, com as formas padronizadas e com os compassos cronometrados. Uma pessoa com outra formação pode se encantar com o assimétrico, se deleitar com o irregular, preferir a dissonância, romper com os padrões artísticos, morais, etc. ou aderir ao tempo de kairós.
Quem se tornou evangélico há 35 anos ou mais acostumou-se a ver as irmãs com cabelos compridos, ouvir sermões acusatórios ou centrados em doutrinas, cantar e ouvir hinos clássicos e com forte entonação sobre a volta de Jesus, falar sobre os sinais dos tempos e sobre a ordem para cumprir a missão. Seu cérebro foi habituado a isso, está constituído assim. 
Se viveu na zona rural o seu cérebro se habituou ao monótono trinar de alguns pássaros e ao melodioso, mas pouco variado, trinar de outros; ao farfalhar das folhas sopradas pelo vento, ao murmúrio da cachoeira e o cantar do galo “repicando” na madrugada. Uma pessoa como essa não aprecia as músicas de hoje e a falta de rima na poesia lhe incomoda. A falta de conteúdo escriturístico nessas músicas lhes provoca desconforto. O ritmo com que são apresentadas soa-lhes blasfemo, vazio de significado.
Por outro lado para os nossos jovens, criados em outro ambiente, acostumados aos constantes acelerar e desacelerar de carros e motos, ao som sempre presente e volumoso da TV, dos toca-CDs e à ausência de uma leitura sistemática da Bíblia, a monotonia está nos hinos clássicos, nos sermões à moda antiga e nos temas centrados em uma doutrina.
Por isso Jesus disse que os olhos são luz da vida e bons olhos significa que a vida é o resultado de um cérebro que foi moldado pelos bons costumes, reformulado por uma vida repleta de superação das mágoas, superação dos fracassos pessoais e dos dramas familiares e sociais. Os olhos guiados por um cérebro orientado por uma religião coerente, pela prática da cidadania e influenciado pelo Espírito Santo são a luz da vida. Um cérebro devidamente esclarecido, que venceu os preconceitos, que sabe lidar com os dramas pessoais e familiares produz bons olhos. Um cérebro que sabe distinguir o tempo em que vive ilumina a vida. Há quem olha o presente com olhos do passado (os saudosistas) e há quem olha o passado com os olhos do presente (percebem as mudanças e tiram proveito delas).
Por essa razão pode-se dizer que:
Olhos bons procuram as virtudes dos semelhantes e as possibilidades de converter algum defeito em virtude.
Um bom educador procura detectar a ignorância do aluno para ajudá-lo a superá-la. Um mau educador procura ver as dificuldades dos alunos, do sistema em geral, para justificar a sua falta de sucesso como educador.
Olhos bons procuram oportunidades de servir (orar, trabalhar, colaborar, elogiar, educar, apontar sugestões, engajar-se).
Olhos bons procuram realçar aspectos positivos como forma de superar os aspectos negativos. Procuram compreender as causas dos insucessos, o porquê das diferenças, o motivo das ações praticadas, as intenções de quem faz e as dificuldades pessoais de quem coordena ou executa.
Olhos bons procuram ver além do presente (Mt 6.19). Ver além do que viu, ver a intenção de acerto através do erro, ver a busca da fé através da dúvida, ver o clamor por socorro que pode estar oculto em cada manifestação de aparente rebeldia. Bom solhos veem na aparente indiferença algo mais do que falta de vontade ou de disposição. Sabem que ali pode estar presente um relato de dor, a marca de uma frustração ou a falta de esperança. Que talvez seja a manifestação de um pedido de socorro ou o aviso de que se espera algo diferente.
Olhos bons veem na oferta da viúva pobre (Mt 12:42), naquele pouco que foi feito, uma demonstração de vontade de fazer mais. Olhos bons leem para aprender, descobrir coisas novas. Leem para atualizar e enriquecer o cérebro. Leem para compreender o drama dos outros e os gritos de socorro nem sempre expressos na linguagem comum.
Se os olhos forem bons, disse Jesus, quanta luz, quanta contribuição, quanta tolerância, quanta orientação disponível.  Se os olhos forem bons, isto é, se o cérebro foi reformulado através de uma leitura saudável, da busca de mais esclarecimentos, da atuação do Espírito Santo, de reuniões de estudo e da participação aos cultos bem conduzidos, quanta bênção.
Por outro lado Jesus disse que os olhos podem ser as trevas da vida.
Olhos maus são os olhos do preconceituoso porque não conseguem olhar sem focalizar os defeitos. Não conseguem olhar sem ver maldade no que se apresenta, não conseguem olhar sem ver más intenções nos gestos. 
Olhos maus são os olhos do invejoso porque não vibram com a vitória do outro.
Olhos maus são os olhos do ignorante porque não admite a necessidade de mudança em si mesmo, sempre é o ouro que tem que mudar.
Olhos maus veem oportunidade de explorar o outro.
Olhos maus veem oportunidade de autopromoção.
Olhos maus leem para aplicar ao outro.
Olhos maus leem para confirmar o que pensam.
Conclusão
Na conclusão Jesus fala “bruscamente” de dois senhores. É impossível ter olhos bons e olhos maus ao mesmo tempo. O que é possível é ser prudente e partir do pressuposto de que tudo merece uma análise antes de ser denunciado. O que é possível é ouvir antes de punir, é dialogar antes de legislar, é tentar acarear antes de odiar ou punir.
É impossível ser bom e mau ao mesmo tempo, mas é possível perceber que as pessoas não são obrigadas a concordar conosco, nem fazer o que nós queremos que façam a menos que sejam crianças ou nossas empregadas.

Campo Grande,  27/12/2008

Antonio Sales    profesales@hotmail.com

sábado, 24 de setembro de 2011

O OLHAR DE JESUS



Era o mês de janeiro do ano de 2002. Eu estava na cidade de Bodoquena, MS. Estava muito cansado, exausto. Fatigado pelos afazeres e problemas da vida e ansioso por descanso. Queria passar uns dias sem pensar em algo específico, deixar os pensamentos caírem no vazio. Viver por, alguns dias, o nada, o vazio da existência.
Era uma quarta-feira e o vazio fazia-me sentir a necessidade de ouvir uma palavra consoladora. Fui à igreja. Sentei nos últimos bancos. Não queria ser visto. Queria ouvir algo que me animasse,  que me trouxesse de volta à existência. Nessa noite uma irmã solou um hino conhecido, mas que fazia tempo não o ouvia. O meu estado de espírito estava predisposto a encontrar conforto pessoal nas palavras desse hino. Quando ela cantou “seu maravilhoso olhar” proferiu as palavras que eu precisava ouvir.
Qual a maravilha do olhar de Cristo?  Perguntava eu. Se Ele me olhasse hoje qual seria,  para mim, o significado desse seu olhar?  Eu estava de férias e havia saído de Campo Grande para descansar. Eu não queria escrever, pregar ou ensinar ninguém naquela semana. Também não queria dormir. Estava em busca de algo que não fosse rotineiro. Mas ali estava um hino conhecido com suas palavras familiares, embora  há muito tempo não as ouvia,  fazendo eco no meu coração. No restante daquela semana, enquanto andava pelos campos e balneários da localidade, as palavras do hino ecoavam em meus ouvidos e a pergunta persistia: qual a maravilha do olhar de Cristo?
Pensava nas imagens que temos de Cristo. Sempre sério, olhar parado, penetrante e perguntava: é a esse olhar que o autor do hino se referia quando escreveu essa poesia?
Numa tentativa de compreender a expressão “maravilhoso olhar” comecei por pensar nos olhares humanos.
Os olhos são a vitrine do corpo dizem os iridólogos. Não estou convencido disso, mas estou convencido de que os olhos são a vitrine  da alma. O olhar, normalmente,  revela o que vai no interior: o medo, o ódio, o amor, a indiferença e até a  malícia. Ele revela os nossos sentimentos e, por vezes, trai os nossos pensamentos. Quantas vezes o olhar revela sentimentos que não pensamos em revelar.
Pensemos por um pouco nos diversos olhares humanos.
Há o olhar cintilante dos enamorados. Ele revela expectativa, sonhos, coração ardente, entusiasmo. Revela o fruto da confiança nos sentimentos do outro, na sua sinceridade.
Também tem o olhar cintilante os enamorados pela vida.  Seja do  profissional que aprecia o que faz, que tem convicção de estar cumprindo um importante  papel social, seja do pai ou da mãe  que pode sentir orgulho dos seus filhos. Pode ainda ser o olhar do jovem que acaba de ingressar na faculdade, no curso dos seus sonhos. Todos têm um brilho no olhar. É um olhar contagiante, animador.
Há o olhar faiscante de ódio e rancor. É o olhar dos feridos, dos que planejam vingança. Dos que sonham com a desforra, com a aniquilação do outro.
Há o olhar sem brilho do desiludido. Um olhar que expressa desânimo e revela a desilusão que vai na alma. É o olhar do decepcionado com o próximo e com a vida. É olhar desesperançado do desempregado, do pai que tem um filho dominado pelas drogas, daqueles que investiram “tudo” e parece não estar tendo retorno. O olhar daqueles que perderam fé e caíram no vazio. Era o meu olhar naqueles dias.
Há o olhar desconfiado. Ele revela a desconfiança no outro ou na sua própria capacidade de convencimento.
Há o olhar de reprovação expresso nos olhos dos pais quando discordam do comportamento dos filhos. É o que chamávamos, quando crianças, de “rabo de olho”.
Há o olhar vago, dispersivo, de quem não entendeu ou não está interessado no assunto. Era o olhar de muitos alunos nas minhas aulas de matemática.
Há o olhar de descrença no outro. Aquele olhar que me diz que você não aposta em mim, não acredita no que eu proponho e nem na minha capacidade ou boas intenções. Não acredita na minha história da vida, na dor que eu sinto, na disposição que tenho. Era ao olhar que me fustigava naqueles dias.
Há também o olhar perscrutador do cientista. Daquele que busca desvendar algum mistério relacionado com a sua área de conhecimento. Mistério que existe em cada objeto que ele vê. O cientista olha o mundo diferente.
Há ainda o olhar malicioso de quem está com objetivo de derrotar o outro. Em busca de um pretexto, de uma oportunidade para dar o golpe fatal. Não é um olhar de ódio, mas é um olhar de maldade, de hipocrisia.
Cada olhar reflete um estado de espírito ou uma condição do caráter. Se for passageiro, momentâneo reflete o estado de espírito ou humor da pessoa. Se for constante reflete o caráter.
Esses são os olhares humanos e há outros que poderiam ser indicados pelo leitor, mas vamos parar por aqui por não ser nosso objetivo analisar esses olhares. Este foi apenas um prelúdio para preparar o nosso espírito para compreensão do olhar de Jesus.
Por que o olhar de Jesus é maravilhoso e por que provocou lágrimas em Pedro?
O olhar de Cristo é capaz de desnudar a alma humana e Ele sempre surpreendeu os Seus seguidores com o Seu olhar. O Seu olhar  descobria necessidades secretas, problemas ocultos. Mas era um olhar de compaixão. Ele não usava dessa sua capacidade de desvendar os segredos para expor as pessoas ao ridículo. Não tentava desmascará-las embora tudo soubesse sobre elas.
Referindo-Se a Judas ele disse: “um de vós é o diabo” (Jo 6:70). Mas foi tão discreto que cada um dos outros se perguntava: será de mim que Ele esta falando?
Dissemos que o olhar de Cristo desvendava necessidades secretas e se compadecia dos sofredores. Vejamos alguns exemplos.
Ao olhar para a mulher samaritana (João 4), viu o horário impróprio de buscar água,  percebeu o seu andar desconfiado e o olhar sorrateiro. Descobriu imediatamente toda a desventura da sua alma. Desvendou toda a mazela espiritual da sua vida. Mas (que olhar maravilhoso!),  não a condenou. Deu-lhe esperança, um significado para vida.
Ao olhar para a mulher pecadora (João 8), ameaçada de morte, percebeu toda a angústia que invadia a sua alma e viu a vítima que se escondia sob seus longos cabelos. Viu a dor que se estampava no seu rosto cansado. Ao Seu olhar não havia naquele rosto sinais de maldade ou de safadeza. Havia sim, uma profunda dor e desilusão para com os seres humanos, especialmente para com os homens que a exploraram e agora a condenavam. Que “maravilhoso olhar”!
Ao olhar para Mateus, sentado na alfândega, cobrando impostos (Mat. 9:9), os homens viam ali um publicano, traidor do povo, um desprezível. Jesus, ao olhar para ele, viu mais do que um publicano. Viu o desejo que ele tinha de ser aceito novamente, de ser reintegrado ao seu povo.  E lhe disse, vem comigo!
Ao olhar para Pedro, na praia do Mar da Galiléia, viu, sob a aparência rude do pescador, um coração bondoso, um espírito voluntário.
Ao olhar para Herodes viu toda a arrogância da sua alma e o seu desejo de tirar proveito de qualquer situação por mais aviltante que fosse. Foi por isso que se recusou em atender o desafio de Herodes de proceder alguns milagres em sua presença (Lc 23:8, 9).
Ao olhar para Pilatos viu a covardia estampada em seu rosto. Viu o seu compromisso com o poder, mas não com a justiça. Viu a submissão cega ao poder romano e o descompromisso para com a verdade. Viu o desejo de manter-se no poder a qualquer custo( Jo 18).
Essa é a maravilha de olhar de Jesus.
Por que então, ao olhar para Pedro, na sala do Sinédrio  provocou lágrimas? Foram lágrimas de desespero ou lágrimas de esperança? Por que foi maravilhoso aquele olhar?
Foi maravilhoso porque Jesus, mesmo sendo capaz de desnudar a alma humana e descobrir todas as suas mazelas, não expunha as pessoas ao ridículo e nem as desesperançava. Não lhes jogava em rosto a fraqueza descoberta.
Jesus previa os acontecimentos, avisava os envolvidos, mas não esperava que eles compreendessem plenamente as suas instruções.  Ele sabia o que ia acontecer, mas compreendia a fraqueza humana em evitar que o fato se concretizasse.
Ele, ao desvelar a alma humana, penetrava também nas lutas internas de cada ser, nos conflitos da alma, nos desejos humanos e na incapacidade humana para gerenciar as emoções nos momentos de tensão.
Quando Ele alertou a Pedro de que O negaria três vezes naquela noite, não estava chamando a Pedro de covarde ou querendo revelar a sua fraqueza (Mt 26:34). Na realidade, Ele estava dizendo: Pedro, você é um forte, um homem sincero e destemido. Alguém que enfrenta o mar bravio sem temor, que está disposto a dar a vida por esta causa  que abraçou. Mas, Pedro, a situação pela qual irei passar, a cena que você  vai presenciar, se me acompanhar, é indescritível. Será tão cruel, tão desesperadora, tão desumana, tão inédita que você não vai conseguir compreender e, conseqüentemente, não conseguirá  suportar. Quero poupá-lo desse sofrimento atroz, dessa cena desesperadora. Não quero vê-lo arrasado, desiludido com tudo e com todos  e por isso o aviso para que você se poupe dessa hora. Não tente me apoiar quando Eu estiver preso, Pedro. Você não conseguirá. A situação se afigurará pior do que tudo que já foi vivenciado ou imaginado por você, por isso você não suportará e me negará três vezes.
Ele queria evitar a dor de Pedro, mas Pedro não compreendeu como muitos de nós não compreendemos e não compreenderíamos se estivéssemos lá.
Pedro imaginou que nada poderia ser pior do que o mar bravio, que nada poderia superar as injustiças sociais presenciadas por eles continuamente, que nada superaria as desilusões que o povo  sofria em relação aos líderes. O pior já estavam vivendo, pensava ele.
E Pedro entendeu que deveria apoiar Jesus, nesse momento. Que deveria segui-lo de perto para dizer-Lhe: aqui está o seu amigo. Jesus compreendeu que seria inútil insistir e se calou.
E Pedro foi acompanhando os guardas quando estes levaram o seu Mestre. Queria ser útil, apoiar.
No entanto, ao chegar ao sinédrio o que ele presenciou era pior do que o imaginado. A Esperança de Israel estava sendo desprezada, esbofeteada pelos sacerdotes, maltratada pelos líderes religiosos da sua nação.   E o Mestre, tão corajoso, que dominava o mar e que expulsava os demônios não abriu a Sua boca.  Havia o Mestre se acovardado?
Apanhou de um soldado e perguntou calmamente: por que me feres? Ele, que naquela mesma noite havia feito uma escolta inteira tombar-se no horto, agora apanha e ainda perguntou: que fiz de errado para merecer essa bofetada? Parecia alheio ao que se passava.
Aquele que Pedro julgava o dono saber parecia não entender de nada. O forte em denunciar a hipocrisia dos líderes se calara na presença deles. Estava dominado.
Ele que acalmou o mar e curou doentes; que curou  leprosos da doença mais temível da época. Ele que ressuscitou mortos já em estado de putrefação, que chamou os fariseus de hipócritas e desafiou a moral existente indo comer com pecadores,  agora se cala diante dos fariseus que o acusam.
Ele que havia feito os guardas tombarem lá no Getsêmani, e disse que teria doze legiões de anjos à sua disposição agora apanha e pergunta inocentemente: por que me feres?(Jo 18:23)
Diante de tal cena, tão inesperada, uma dúvida invade a alma de Pedro. Seria aquele personagem o Jesus que Pedro conhecia? Estaria de fato tudo aquilo acontecendo ou estaria ele a sonhar em público? Tudo aquilo que ele presenciara, nos três anos que seguiu a Jesus, teria sido verdade ou estivera ele enganado o tempo todo?  Seria Jesus apenas um mágico e ele Pedro, tão cegado pelo fanatismo, teria visto acontecer cenas que, na realidade, nunca aconteceram?
Pedro confuso, diz para a moça que o aborda: “não conheço esse homem” (Mt 26:74). Pedro estava dizendo: não sei se é este o homem que eu estava seguindo. O que eu estava seguindo era um forte, era Deus, curava, dominava o mar e o mundo e jamais seria humilhado como o vejo agora!
Deve haver um equívoco em tudo isso, pensava Pedro. Ou eu estava iludido antes ou estou sendo iludido agora.
Parece que vejo Pedro, à semelhança do filósofo Descartes, dizer: os sentidos me enganam. Ou eu seguia um embusteiro e agora vejo o seu verdadeiro caráter, ou o verdadeiro Deus que  eu seguia escapou das mãos dos soldados e este que vejo é outro que, por estar desfigurado pelos hematomas e abatido pelo cansaço,  se parece com qualquer um, inclusive com ele. Pedro, ao negar, estava tentando ganhar tempo para por os seus pensamentos em ordem e se apropriar da situação.
Quando o galo cantou Jesus ele olhou para ele. E o olhar de Jesus lhe transmite uma mensagem. Pedro, dizia o olhar de Jesus, você é um forte, mas, como eu disse, a situação é pior do que qualquer homem pude suportar. A cena é tão incompreensível, é tão estonteante que eu quis poupá-lo disso. Lembra-se que eu o avisei? Quando vi que não conseguia demovê-lo do intento de me acompanhar nesta hora dei-lhe um sinal. Este galo, portanto,  cantou para lembrá-lo de que Sou Eu mesmo que Estou aqui; que você não está  equivocado; não está seguindo o prisioneiro errado. Sou Eu mesmo, Pedro. O que você viu e o que está vendo agora é a realidade, Pedro. Não há engano e nem ilusão de ótica. É simplesmente isso mesmo, e foi para isso que Eu vim. Aqui estou mais uma vez  mostrando o meu  poder sobrenatural em revelar o futuro e meu pleno domínio sobre as emoções mesmo diante de tanta tensão.
Pedro compreendeu a mensagem no olhar de Jesus e chorou. Foi um choro de frustração diante da sua fraqueza, por isso foi amargo, mas não foi um choro de desespero porque o olhar de Cristo foi confortador, um olhar de quem compreende as falhas humanas cometidas nos momentos de tensão.  Sim, ali estava, de fato, o Messias e o seu olhar  transmitiu uma mensagem de esperança.
Pedro compreendeu isso e o autor do hino cantado também captou a grandeza desse olhar.
O olhar de Cristo é maravilhoso porque não condena. É maravilhoso porque nos diz: não se desespere e nem se envergonhe porque Eu sabia que a prova seria difícil  e estaria além da capacidade humana de suportar.  Você não me traiu, você não é um covarde. Você é apenas um ser humano que está vivendo no limite, portanto, não entre em pânico.
Este é o olhar de Cristo e por isso é maravilhoso.
Lucas 22: 54 – 62       
Antonio Sales      profesales@hotmail.com
Bodoquena, 16/01/2002.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

O Bom Samaritano


No Evangelho Segundo Lucas encontramos, entre as muitas parábolas de Jesus, a conhecida como “Parábola do Bom Samaritano”(Lc  10:25 ). De acordo com o texto bíblico um homem que ia de Jerusalém para Jericó foi assaltado, espancado e depois abandonando como morto. Horas depois passaram por ali dois religiosos, que atuavam diretamente nos serviços do templo, e um  samaritano. Passaram em horários diferentes e o samaritano foi o último deles. Os dois primeiros não se deram ao trabalho de pensar no problema do homem e o terceiro o socorreu  merecendo o respeito de Jesus. O que socorreu pertencia a uma nacão de desprezados pelos judeus, a um grupo tido por apóstata  que perdera o direito à herança divina. Foi ele quem atendeu o moribundo e recebeu a aprovacao divina.
Essa parábola é atual. O homem (ser humano) está desamparado em meio a um turbilhão de informações. Já não sabe mais educar os seus filhos, já não tem mais as garantias de antigamente (embora tenha outras maiores e melhores) que lhe davam um norte. A absoluta autoridade dos pais, a certeza de que o amanhã será igual (ou quase igual) ao hoje,   a “firme” palavra dos líderes religiosos e a moralidade de aparência eram certezas que davam um rumo para  a vida de todos. Tudo isso não existe mais, as certezas ruíram e os homens estão no desamparo.
Nesse  momento solene da história passam por nós os religiosos: os pastores e o líderes leigos das igrejas. Olharão eles para nós e nos socorrerão? Precupar-se-ão com o nosso desamparo?
Durante muito tempo alimentei a ilusão de que um pastor estava a serviço do povo. Pensava que podia contar com ele para orientacão, como mediador de conflitos e como sábio conselheiro. Pensava ainda que ele se posicionaria ao meu lado quando eu estivesse em apuros, sendo caluniado ou ludibriado por alguém.
Eu não esperava ter razão sempre, receber sempre um tapinha nas costas ou coisas do tipo. Esperava que ele defendesse, na prática e do púlpito, a minha dignidade, o meu direito de ser respeitado, o meu direito de, às vezes, errar enquanto tenta acertar, o meu direito de pensar, discordar e sugerir.
Espera que dissesse que não é só ofendedo a Deus que se peca, que não é só a honra da igreja que deve ser protegida (existe instituição sem o ser humano?).
 Queria que ele dissesse que a calúnia me ofende, me faz sofrer. Que ele assumisse que a criança precisa de proteção e que falasse sem rodeios e sem espiritualizações contra a violência doméstica. Que propusesse projetos sociais para orientar os jovens contra as drogas e preparar o  jovem que precisa de emprego. Que distribuísse, na igreja, endereços das delegacias de proteção à mulher e me ensinasse como fazer denúncias. Que se posicionasse quando alguém, maldosamente, solapasse a atividade do outro, na igreja.
Como se pode ver, eu não esperava muito. Esperava que ele fosse humano e não divino, que vivesse nesta terra e não no céu, que se preocupasse com o ser humano tanto quanto se preocupa com Deus e com a honra da igreja. Que assumisse que um sermão condenatório e sem as devidas orientações sobre como proceder é tão irreverente quanto o cochicho dos jovens. Esperava que ele deixasse de ficar repetindo coisas mil vezes proferidas e atualizasse o discurso. Que evitasse as citações enfadonhas e as  compilação por se falta de ética e de competência. Queria que o salário de um pastor trouxesse resultados práticos em benefício da igreja.
Descobri, para o meu desamparo, que não posso contar com eles porque eles estão a servico de Deus e não dos homens. Eles são o levita e sacerdote da parábola e não o samaritano.
Eles não somente vivem isso, mas pregam abertamente sobre isso embora condenem os dois personagens da parábola. Que eles vivem isso constatei na minha vida como membro de uma igreja por mais de 45 anos. Que eles pregam sobre isso qualquer pessoa pode constatar. Quando eles se propõem a tratar de relacioamentos em seus sermões, ou condenar erros, focalizam o tempo todo o desagrado a Deus e a desonra da igreja. Em nenhum momento falam do sofrimento que causamos ao outro com o nosso comportamento, do respeito que devemos ao irmão etc. Eles defendem abertamente a honra de Deus e procuram ocultar as desonras que sofremos porque se elas vierem a público “mancharão” a honra da instituição.
Foi por esse discurso  que percebi que estavam voltados para a defesa de Deus e não do homem. Percebi então um enorme descompasso entre a atividade pastoral e a vida cristã.
Analiso esse descompasso nos parágrafos seguintes. Faço, às vezes,  em forma de questões para que o leitor tire suas próprias conclusões.
Deus precisa de defensores ou de testemunhas da Sua bondade, tolerância e respeito pelo outro? Um Deus de verdade precisa de defensores (Jz 6:31)? Por que Jesus elogiou o samaritano se eram os outros dois que defendiam a Deus, que viviam e defendiam a religião?
Sei que defender a Deus ou voltar-me apenas para as questões religiosas é muito  mais facil. Não se corre o risco de desagradar ninguém  (Deus não manifesta o Seu desagrado) e se é  tido por neutro, imparcial. Essa postura garante o emprego em uma instituição que perdeu de vista a sua funçào social.
Além disso (nessa perspectiva de suposta neutralidade), sempre se pode dizer que não fez por questão de consciência e se pode até burlar aqueles que querem nos cobrar alguma coisa. Toda pessoa que serve a um patrão e trabalha cedida para outro patrão consegue, se desejar, enganar os dois. Para um ele diz que não recebeu tal ordem e para o outro dirá que não recebeu apoio para executar a ordem. Será que é essa a intencão dos pastores: escapar de qualquer cobrança?
Em segundo lugar penso que essa ideia de trabalhar para Deus está em descompasso porque o salário é pago pelos homens.  Alguém poderá protestar dizendo que é pago pelos dízimos e os dízimos são de Deus. Os dízimos são de Deus como os impostos são do governo: quem paga é o povo, é na mesa do povo que ele faz falta, e por isso deve retornar em benfício do povo.
Por que Deus não envia o dinheiro diretamente dos cofres celestiais para eles? Será que o fato de Deus instituir o dízimo (a ser pago pelos seres humanos) não é uma indicação de qual deveria ser o foco do trabalho do pastor? “Digno é o trabalhador do seu salário” disse o apóstolo (1Tm 5:18). Digno é o povo de ter retorno pelo que pagam, dizemos nós.
Nem eles acreditam que são pagos por Deus, pois se acreditassem não ficariam desesperados quando os dízimos começam cair  e não fariam tantos apelos à chamada mordomia cristã, sempre com ênfase no dinheiro.
Não estou propondo que os fiéis deixem de devolver o dizimo assim como nunca passou pela minha cabeça pregar a sonegacão de impostos. Questiono o uso, o discurso e quero apenas entender e chamar a atencão dos fiéis acerca dos direitos que eles têm de receber um bom atendimento por parte dos pastores. Esse bom atendimento já foi parcialmente definido parágrafos acima.
Tanta coisa para ensinar ao povo, tanta coisa para fazer pelo povo, mas não se faz porque se trabalha para Deus. O que diria Jesus a esse respeito? Pastor tem que ser neutro? Pastor é para pastorar o povo ou  a Deus? É para cuidar do povo (orientando, promovendo justiça), tomando posição ou só da igreja? Deve se poscionar ou ficar “em cima do muro” para evitar reveses e  garantir o salário?
Trabalhar para o ser humano não e só pregar. Inclui  ensinar, mediar confitos, orientar com base em conhecimentos científicos, promover um relacionamento saudável, ajudar mais e cobrar menos, se fazer mais presente, condenar menos e incentivar mais as iniciativas particulares. É ter um compromisso com o povo e seguir o exemplo de Moisés (Êx 32:32). É saber que um sermão com base no senso comum não ajuda ninguém. É ter consciência de que um sermão com base em citações prolongadas e juntadas por acaso não acrescenta saber.
E tudo isso e muito mais.
Alerto que escrevo essas linhas tendo por base minha vivência religiosa em um instituição específica. Pode não ser a experiência de mais ninguém e cada leitor escreverá a sua própria versão moderna da parábola do Bom Samaritano.
Antonio Sales  profesales@hotmail.com
Nova Andradina, 21 de setembro de 2011.

sábado, 17 de setembro de 2011

Perguntas


 Mais uma vez estou brindando o leitor. Desta vez com o poema "perguntas" do jornalista Genival Mota, com a permissão do autor.

Perguntas

E se...
E se a vida for mais vida
Do que pensamos ou queremos?
E se a morte for menos morte
Do que imaginamos ou tememos?

E se depois, Demas conseguiu conciliar
O amor ao presente século com o futuro?
E fez como João Marcos
Que assumiu seus riscos e furos?

E se a nossa visão sobre a lei
Estiver estreita demais?
E isto não nos transforma
Em falsos liberais?

E se estivermos adorando a Igreja
Em vez de adorar a Deus?
E se a gente nem se deu conta
Que não passamos de fariseus?

E se o culto se transformou em algo
Que nem paramos para pensar o que é?
E se estivermos realizando por orgulho ou
Comodismo o que deveria ser feito por fé?

E se aos momentos de adoração
Agregarmos a reflexão?
Não foi isso que Deus fez
Durante toda criação?

E se nossos encontros fossem menos
Repetitivos e previsíveis?
Estaríamos falando em mudanças
Determinantemente impossíveis?

E se o que é velho dar a
Mão ao que é novo?
Não tem sido esta a atitude de
Deus e do Seu Renovo?

E se a liberdade fosse mais
Exercitada entre nós?
Muito mais pessoas não teriam
Mais direito, vez e voz?

E se parassem para discutir
Algumas dessas perguntas?
Será que como pessoas
Não cresceriam juntas?

Tantas perguntas, tantas questões!

Genival Mota, Campo Grande, Julho de 2011