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sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A JUSTIÇA SEGUNDO TIAGO –II



Uma leitura superficial ou tendenciosa do livro de Tiago pode nos dar a impressão de que ele contradiz o apóstolo Paulo no que diz respeito à justificação. Para Paulo a justiça vem pela fé e para Tiago ela é produto das obras.
Conjecturei no texto anterior que eles tratam de justiças diferentes. Neste texto pretendo aprofundar um pouco essa questão.
Paulo, no meu entender, estava discutindo com os romanos (Rm 1:16,17) e gálatas (Gl 2: 20) a questão da salvação, de como o ser o ser humano é aceito por Deus e passa a ser dirigido por Ele. A justiça de que ele fala é a justiça imputada pelos méritos de Cristo que nos torna aptos para integrar a família de Deus. A justiça que nos qualifica para uma relação com Deus. Essa justiça independe da nossa ação. Ela nos é atribuída pela aceitação da morte substituinte de Cristo. Enfim, ele fala de uma relação espiritual.
Tiago está tratando da religião prática, da religião  que é vivida no cotidiano. Ele afirma que a religião sem mácula é aquela que nos põe em contato direto com o ser humano, com as suas necessidades, suas incertezas, suas limitações (Tg 1:27).
As relações humanas são norteadas por leis e um ser justo é aquele que respeita essas leis, que não explora o próximo, não difama e não trai a sua confiança conforme disse o salmista (Sl 15). Nesse aspecto é correto afirmar que justiça decorre da obediência à lei, do viver correto, do agir conforme as normas da moral.
Temos a tendência de espiritualizar qualquer leitura da Bíblia, como se a vida cristã tivesse uma única dimensão. No entanto, cada um desses escritores neotestamentários focaliza uma dimensão conforme a problemática que a igreja, objeto de sua carta, estivesse enfrentando. Não creio que Tiago tenha pensado em nós do século XXI ou que tenha escrito a esmo. Embora ele não cite textualmente uma igreja é muito provável que tivesse uma delas em mente. A sua advertência aos ricos (Tg 5) mostra que ele tinha um foco, um público específico.
É interessante observar que embora tenham focos diferentes tanto um quanto o outro apela para experiência de Abraão.
Quanto a isso Tiago diz:
Porventura o nosso pai Abraão não foi justificado pelas obras, quando ofereceu sobre o altar o seu filho Isaac? Bem vês que a fé cooperou com as suas obras, e que, pelas obras, a fé foi aperfeiçoada. E cumpriu-se a Escritura, que diz: E creu Abraão em Deus, e foi-lhe isso imputado como justiça, e foi chamado o amigo de Deus”(Tg 2: 21-23).
Paulo, por sua vez, afirma:
Que diremos, pois, ter alcançado Abraão, nosso pai, segundo a carne? Porque, se Abraão foi justificado pelas obras, tem de que se gloriar, mas não diante de Deus. Pois, que diz a Escritura? Creu Abraão em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça. Ora, àquele que faz qualquer obra, não lhe é imputado o galardão segundo a graça, mas segundo a dívida. Mas, àquele que não pratica, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça”(Rm 4: 1-5).
Considerando o que escrevemos sobre a experiência de Abraão (http://www.debateologicosales.blogspot.com.br/2012/10/a-fe-de-abraao.html) penso que podemos fazer a seguinte paráfrase desses dois apóstolos:
Tiago: Abraão provou aos homens a sua justiça quando mostrou a sua disposição de sacrificar o seu filho a Deus conforme o costume da época. Ao caminhar com o filho para o Monte Moriá (Gn 22) ele revelou (ou confirmou) aos homens a sua crença em Deus e, em virtude desse ato, foi reconhecido como justo e amigo de Deus.
Paulo: A justiça de Abraão, perante Deus, se deu quando, suspendendo o sacrifício de seu filho, aceitou o substituto divino. Se fosse justificado ou considerado, por Deus, como amigo pela disposição em oferecer Isaque a sua justiça não teria sido pela graça. Ele teria “comprado” a justiça, isto é, colocado a Deus na posição de quem favorece os que Lhe bajulam. Essa ideia contraria o exposto por Jesus (Mt 5:45,46).
Dessa forma estamos entendendo que, na perspectiva de Tiago, Abraão foi considerado justo pelos homens quando se dispôs a oferecer Isaque a Deus e, na perspectiva de Paulo, ele foi considerado justo por Deus quando aceitou a anunciação da morte substituinte de Cristo prefigurada pelo cordeiro que foi disponibilizado para morrer no altar.
Estamos entendemos também que Abraão subiu o monte como uma espécie de justo (a justiça social, aquela que se manifesta perante os homens) e desceu como outra espécie de justo (a justiça espiritual, a justiça conferida por Deus pela aceitação do cordeiro).
Campo Grande, 25 de outubro de 2012.
Antonio Sales                   profesales@hotmail.com

sábado, 20 de outubro de 2012

A JUSTIÇA SEGUNDO TIAGO



Estou pensando no “apóstolo” que escreveu a epístola que traz esse nome. Grafei apóstolo entre aspas porque,  segundo  Bart Erhman(*), um teólogo da Universidade de Princeton, era comum na antiguidade alguém que sabia escrever, mas não tinha respaldo social, escrever em nome de alguém que tinha esse respaldo mas não sabia escrever.
Os Tiagos (parece ter sido mais de um) (Mt 13:55,Mc15:40, At 1:13), que foram discípulos de Jesus, provavelmente eram analfabetos. O mais culto dentre os discípulos parece ter sido Judas Iscariotes que não nos deixou um bom legado (Jo 12:4-6). Não posso afirmar que não foi um discípulo quem escreveu a carta com  o nome de Tiago, mas ouso conjecturar que pode não ter sido.
Algumas questões sobre o Cânon Sagrado me incomodam. Afinal, qual foi o critério adotado pela comissão encarregada de escolher os livros que seriam incluídos no Cânon? Ao apresentar ao Concílio encarregado de aprovar essa relação qual foi o debate que se travou? Qual foi o aparecer do relator? Quantos votaram a favor? Será que o relator não era um legalista que Paulo, se tivesse vivo,  enfrentaria como enfrentou a Pedro (Gl 2:11-14)?
O Cânon, ou relação dos livros  sagrados, foi constituído muito tempo após a morte dos apóstolos.
Com relação à lei e à graça o certo é que quando nos interessa apoiamo-nos em Paulo, no seu discurso sobre a graça e a fé. Quando nos interessa nos apoiamos em Tiago, no seu discurso em favor da lei.
Tiago foi homem de poucas letras (escreveu pouco, se comparado com Paulo) e foi direto em cada ponto que queria atacar,  porém, teve o cuidado de justificar a sua posição. Ele tem o estilo de um intelectual.
Ele, ao contrário de Paulo,  defendeu que Abraão foi justificado pelas obras. No meu texto anterior discuto isso e me posiciono a favor de Paulo. Mas Tiago também cita alguns preceitos dos dez mandamentos e alguns supõem que ele esteja dizendo que seremos julgados por essa lei. Há quem diga que ele a denominou de “lei da liberdade” (Tg 2: 10-12).
Entendo diferente, isto é, entendo que ele esteja dizendo outra coisa. O texto parece sugerir outra interpretação.
Se Tiago está dizendo que seremos julgados pela lei dos dez mandamentos ele está contrariando Jesus porque este afirmou que seremos julgados pelo que fizermos ou deixarmos de fazer aos nossos semelhantes (Mt 25: 34-46). Jesus não nos perguntará se matamos ou deixamos de matar, se adulteramos ou deixamos de adulterar, mas se socorremos ou deixamos de socorrer os nossos irmãos em necessidade.
Parece-me que Tiago, no segundo capítulo,  se identifica com a visão de Jesus. Vejamos por que.
Primeiramente entendo que ele citou os dez mandamentos como ilustração. Ele estava dizendo que se você não rouba porque não encontrou o que roubar então você não adultera porque não encontrou com quem adulterar. Ou está dizendo que quem cobiça ainda não roubou por ter medo de ser pego. O seu raciocínio até parece lógico-matemático. Parece binário. Ou você é uma pessoa respeitável ou não é. Não há meio termo para ele. Ele está dizendo que não adianta fingir ser bom, tem que ser bom. Entendo também que lei para ele não se resume aos dez mandamentos.
Ele se posicionou em favor das obras da lei para a justificação. Quero crer  que ele estivesse tratando da justiça social  (Tg 5) e não da justiça para salvação ou justiça espiritual. Deve estar aí a sua aparente discordância com Paulo que tratava da justiça espiritual. Estão falando de justiças diferentes. A justiça social realmente decorre do cumprimento da lei, ela se fundamenta mais na moral (cumprimento do dever, punição, recompensa) do que na ética (reflexão sobre que se faz). Tiago pensa numa religião prática, palpável (Tg 1:26,27).
Para não divagar mais volto ao ponto: segundo o meu entender, Tiago cita os dez mandamentos como ilustração e não para enfatizá-los.
Em segundo lugar entendendo que a lei da liberdade (Tg 2:12) de que ele fala não é a lei dos dez mandamentos. É a lei da misericórdia (Tg 2: 13) porque a “misericórdia triunfa no juízo”.
 A lei dos dez mandamentos, para ele, é obrigação e ninguém receberá prêmio por cumprir a obrigação (Lc 17: 9,10). Liberdade é ir além da obrigação e somente a misericórdia nos levará além de não matar, não roubar, não mentir. A misericórdia nos levará ao encontro de oportunidade de ajudar, servir, fazer o outro sentir-se respeitado e mostrar bondade, etc.  Isso não está de acordo com Jesus (Mt 25:34-46)?
Como cristão, disse Tiago (na minha interpretação), quem respeita não pensa em matar, adulterar, roubar, mentir.  Quem respeita vive a lei da liberdade. Quem respeita ama e quem ama pratica atos de misericórdia, logo, seremos julgados pela lei da liberdade, pela lei que não está explícita nas tábuas de pedra (Ex 24:12), pela lei que a graça de Cristo trouxe ao nosso coração (Hb 8:10). A lei que Cristo trouxe ao nosso coração é a capacidade de respeitar, de socorrer, de não desejar mal, de contribuir, de se envolver para o benefício de todos. É lei que supera a mediocridade, a inveja, a hipocrisia, etc.
Seremos julgados por essa lei do respeito e da misericórdia  porque ela é a lei da liberdade e Tiago é legalista porque ele pensa na religião prática, utilitária. Ele pensa na justiça que se faz presente nas relações sociais.
Paulo, ao contrário, pensa na justiça que vem de Cristo, que nos recomenda ao céu. Pensa no relacionamento com Deus.
Um escritor estava discutindo salvação e o outro estava discutindo relações sociais mediadas pela religião.
Antonio Sales      profesales@hotmail.com
Campo Grande, 08 de outubro de 2012.

(*)Vale a pena ler o seu livro “Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?”,  publicado pela Ediouro.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

POR QUE O MINISTÉRIO DE JESUS FOI TÃO CURTO?


Segundo a tradição cristã após iniciar o seu ministério Jesus dedicou pouco mais de três anos ao trabalho e foi crucificado.
Os deterministas dirão que estava escrito que assim seria e citam uma profecia de Daniel (Dn 9:27).
Não sou determinista, mas também não questiono a profecia citada. Profecia, no meu entender, é antevisão e não predeterminação. Mas não vou discutir profecia aqui porque não é essa a minha questão.
A minha questão é: se Jesus podia escolher o tempo de vida entre a humanidade por que escolheu viver tão pouco? Com mais tempo não poderia ter feito mais, curado mais, ensinado mais e até mesmo influenciado mais os costumes da época?
Gosto de ver certos fatos da vida de Jesus como metáforas da vida humana. Ele ensinou também pelo que viveu e não somente pelo  que explicitou em seus discursos.
Sua vida é uma parábola e seus atos são metáforas.
Tenho pensado que quando alguém quer ajudar pessoas medíocres a saírem da sua mediocridade não pode viver muito tempo entre elas. O contato prolongado com a mediocridade é contagiante. Quem vai trabalhar com  pessoas pessimistas, rústicas, enrijecidas, deve ter tempo para permanecer longe delas e se reabastecer de outras visões mais animadoras sobre a vida. Se alguém quer ajudar quem está "afogando" deve ter apoio para os próprios pés e não pode se deixar enlaçar por ele.
Tenho visto professores que vão trabalhar em escolas de comunidades carentes, ente pessoas sem esperança, pouco  dispostas a se deixarem influenciar, e depois de algum tempo também se tornam intratáveis, grosseiras, pessimistas,  tímidas e com um linguajar pouco recomendável.
Aqueles profissionais que atuam em duas comunidades distintas embora uma seja pouco produtiva se a outra responde melhor aos estímulos intelectuais conseguem se manter mais tempo saudáveis, entusiastas e abertos à aprendizagem.
Quem quer ajudar alguma comunidade carente deve residir entre pessoas não carentes para realimentar  diariamente as suas expectativas, reconstruir a cada dia a sua esperança, ter um motivo para sorrir e ser feliz.
Em outubro de 2011 visitei João Pessoa. Minha filha cursava o seu pós-doutoramento em  Educação Popular de Saúde na  UFPB  sob o orientação de uma autoridade nacional no assunto.
O orientador, apesar do status que desfrutava,  era homem simples. Sua visão clara do que fazia  não o deixava se iludir pela euforia de uma possível  mudança rápida e nem se desiludir pela dificuldade de mudança.
Certo dia, enquanto almoçávamos, ele se referiu com muito pesar a um jovem padre que havia posto fim à própria vida naqueles dias. Era seu amigo e um ano antes tinha trabalhado em Joao Pessoa, na comunidade em que o médico desenvolvia o seu projeto. Jovem, dinâmico e engajado nas causas sociais o padre fora-lhe um braço forte.
Dada à sua prestatividade,  juventude e entusiasmo ele fora transferido para o interior do estado e atuava junto a uma comunidade carente.
Vinha desenvolvendo um bom trabalho, mas agora, cerca de uma semana, pusera fim à vida, não sem antes passar por um atendimento psiquiátrico.
O que deixara a todos perplexos era o fato de que havia  fortes indícios de que não fora  por conflitos espirituais uma vez que ingerira o líquido mortal abraçado a um Rosário. De igual modo quando atuou em João Pessoa dera mostras de ser  entusiasta na  luta em favor dos menos favorecidos e satisfeito com a vocação sacerdotal.
Qual a possível causa da sua depressão? Por que se desiludira tão rápido?
Surgiram as conjecturas e uma delas foi que ele teria se desiludido com a não resposta dos que quisera ajudar. Ao viver entre os que  não respondem teria se tornado, ele também,  "surdo" aos  apelos da esperança? Desistira  de viver porque estava entre os que não queriam mudar de vida? Saltara na “água” sem os equipamentos emocionais necessários para salvar os “náufragos” e, "não tendo encontrado pé", “naufragara” também?
A experiência do médico com as classes populares lhe dizia que quem cura também se fere, quem socorre também precisa de socorro, quem apoia também sente falta de apoio, quem consola também necessita ser consolado.
Naquela tarde fui presenteado com um livro organizado pelo Dr Eymard (*) e, no dia seguinte, ao lê-lo deparei-me  com um capítulo escrito por um psicólogo e cientista político também envolvido com as causas sociais.
Nesse capítulo onde teoriza e contextualiza o lidar com o sofrimento humano  ele destaca a função de “curador”, daquele que por escolha própria ou por dever profissional se ocupa de aliviar o sofrimento do outro. Ao concluir ele espera ter contribuído para que sejamos “melhores curadores ... mas sempre, sempre, irremediavelmente ... feridos!”.
Voltemos ao ponto inicial. Porque Jesus planejou afastar-se da humanidade tão cedo? Resolveu permitir que sua missão terminasse antes  de se tornar tão humano que se esqueceria da sua divindade? Entregou ao Pai as chaves do seu ministério antes de perder o foco e se envolver em causas estranhas ao mesmo? Percebeu que a depressão se aproximava e antes de sucumbir procurou refúgio no seu lugar de origem?
Ficam as perguntas.
Antonio Sales    profesales@hotmail.com
Aeroporto internacional de Guarulhos, 11 de outubro de 2012.
 
(*)VASCONCELOS, Eymard Mourão (org.). A espiritualidade no trabalho em saúde. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 2011.