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segunda-feira, 18 de março de 2013

O QUE SERÁ PIOR DO QUE A GUERRA?


  Aparentemente nada é mais triste, mais grotesco, mais  indicativo da estupidez  humana do que uma  guerra. Milhões de dólares gastos em destruição, milhares de vidas ceifadas, cidades arruinadas, monturos para serem removidos depois, ruínas para serem reconstruídas, escolas fechadas, hospitais abarrotados,  valas com restos humanos putrefatos, prostituição por excesso de carência e tantas outras mazelas são os resultados de uma guerra. Pode haver algo pior do que ela?
Quando ainda garoto li em  um livro escolar uma lição  que falava sobre a guerra, isto é, sobre a dor provocada por uma guerra. Com habilidade o autor do texto  provocava nos leitores  jovens um certo horror por essa prática ao destacar que as guerras ceifam vidas jovens, tiram os filhos do colo materno e os leva  para morte no front. Falava do choro dessas mães, falava das jovens noivas que ficavam viúvas antes de se casarem porque os noivos partiam sem perspectivas de voltar com vida. Falava dos filhos que ficavam sem pais  e das mães jovens que choravam a partida do esposo e pai. Falava da escassez decorrente dos cercos, do choro das crianças famintas e assustadas com os estrondos das bombas e dos tiros de armas  leves ou pesadas. Falava do desespero dos avós ao verem os netos partirem para o campo de batalha  e as netas se desesperarem ao verem os seus sonhos  de um lar se desfazerem   com a partida do amado.
Tempos depois li “confissões do front” de Costa ( 2012 ) e conheci um pouco da vida dos pracinhas da FEB ( Força Expedicionária Brasileira) que lutaram na Itália. Os riscos,  a valentia, a desolação e a exploração do povo sofrido e devastado,  especialmente das mulheres que se entregavam a eles em troca de alguns centavos que pudessem prover alimento para elas e suas famílias ficam evidentes no livro.
Depois de tudo isso eu não tinha dúvidas de que a guerra é o pior dos males que o ser humano pode provocar. Nada seria mais estúpido, nada seria mais brutal, nada seria mais irracional.
Minha opinião mudou quando li Seierstad (2007) uma correspondente de guerra que fez a cobertura da guerra no Iraque para uma rádio norueguesa. Passado o período do bombardeio a jornalista ficou ainda uns dias em Bagdá e ouviu o povo. Os depoimentos são surpreendentes.
Ela ouviu que uma jornalista de moda feminina em uma conversa  ente colegas fez um comentário pouco  lisonjeiro sobre as roupas da esposa de Saddam Hussein. Poucas horas depois a polícia capturou-a e  no dia seguinte seus pais a encontraram na porta da casa com o “corpo negro e azul por causa da surra, com queimaduras de cigarro e a língua cortada”( p. 380). As pessoas tinham cuidado com o que diziam aos próprios filhos e amigos. Viviam assustadas, tinham medo de todos.
O iraquiano Muayad  revelou  que não tinha apreço pelos americanos, mas estava feliz por eles terem invadido o Iraque porque agora ele  podia falar livremente. Contou à Seierstad que quando criança questionou a professora na escola e foi advertido: “isso pode ser perigoso”. Disse ainda que um amigo seu contou uma piada sobre Saddam no pátio da universidade e no dia seguinte ele e sua família tinham desaparecido para sempre. Confessou que tinha se tornado um mentiroso, elogiando o regime, apenas para sobreviver. Fingia ser feliz e gostar do regime. Agora podia falar a verdade e por isso achava que  a invasão americana tinha um saldo positivo.
Diante do exposto penso que pode haver algo pior do que a  guerra: a falta de liberdade. Um clima de medo prolongado  pode ser pior do que a  guerra.  Um ambiente de plena insegurança pode ser pior do que a guerra.
Uma mulher contou que um dia o marido saiu para o trabalho e não voltou. Foi informada de  que fora detido pela polícia, mas quando foi à delegacia em busca de informação  o delegado não lhe dispensou atenção e apenas  disse e não saber de nada. Voltou no outro dia apenas para ouvir que não se deve fazer a mesma pergunta duas vezes. Tentou uma terceira vez e o policial ficou furioso.  Mandou que fosse para casa e esperasse para que algo pior não lhe acontecesse.
Vinte anos se passara e a pobre mulher ainda alimentava esperança de que o esposo estivesse preso em alguma masmorra e que os americanos pudessem libertá-lo. Os filhos não acreditavam na hipótese de rever o pai, mas para aquela esposa havia algo pior do que a guerra: o desaparecimento de um ente querido sem explicação.  A ameaça constante e por tempo prolongado, a desestruturação do lar sem explicação e o rompimento brutal dos  laços familiares eram coisas piores do que a guerra.
A ditadura de Hussein, para muitas famílias,  tinha sido a “encarnação do mal”( p.357). Isso ficou claro para a jornalista quando alguém lhe perguntou se o que ia escrever poderia “ajudar a encontrar os nossos entes queridos” (p.357).
Outro senhor disse que ficou três meses preso sendo acusado de participar de um movimento do qual nunca ouvira falar e concluiu: “fui o único do grupo que saiu dali”.  Para ele havia algo pior do que a guerra: ser acusado  de algo que não deve e ainda ser morto por isso.
Depois dessa leitura fiquei pensando em que mais poderia ser pior do que a guerra e agora não penso em  guerra  apenas como sinônimo de  conflito bélico. Penso em guerra como qualquer conflito declarado, qualquer decisão que põe em risco uma  suposta tranquilidade.
Será que se submeter a um pai violento, abusador,  não é pior do que uma guerra? Essa submissão não seria pior do que um conflito declarado,  ainda que disso resulte penúria e morte?  Talvez outros sejam redimidos pelo  sangue da vítima.
Se uma escola impõe aos alunos o estudo de um conteúdo  com um professor  que usa uma abordagem que o torna  carente de sentido o que seria pior: a submissão ou a guerra?  Se a postura de um professor se torna intolerável a submissão seria melhor do que a declaração de guerra? Não será por isso que alguns alunos se tornam faltosos?  Não seria essa rebeldia uma solitária declaração de guerra?
Se um relacionamento é marcado pela ausência do diálogo, pela falta de confiança mútua, pela marcação cerrada de um sobre o outro, será que a declaração de guerra através do divórcio não é a melhor saída?
São questões que não precisam ser respondidas, apenas pensadas.

Nova Andradina, 18 de março de 2013
Antonio Sales                                  profesales@hotmail.com
Referências:
COSTA, Helton. Confissões do Front: soldados de Mato Grosso do Sul na II Guerra Mundial. Dourados, MS: Arandu, 2012.
SEIERSTAD, Asne. 101 dias em Bagdá. 4.ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.

sábado, 9 de março de 2013

A FRAGILIDADE HUMANA




Há circunstâncias na vida que põem em destaque a nossa fragilidade. A morte é uma delas e talvez seja a mais comum. Há, no entanto, tantas outras que muitas vezes nem são pensadas. Pensemos em algumas delas.
O câncer, por exemplo, que ainda traz um “gosto” de maldição no próprio nome. É um nome que assusta e ainda desafia a ciência apesar dos avanços significativos nessa área.
O registro  bíblico do dilúvio universal é outro desses elementos  que nos expõem. Segundo o referido relato  a terra foi devastada sem que nenhum ser humano pudesse fazer algo por si mesmo ou uns pelos outros. Uns poucos sobreviveram,  mas os méritos científicos e tecnológicos não pertenciam a eles. Em tudo dependeram de Deus. Até mesmo para projetar a arca, para fechar a sua porta e para abri-la depois.
Talvez alguns méritos morais lhes fossem próprios, mas para por ai a questão da meritocracia. Todo o resto foi mérito de Deus. A teoria da graça divina e da  livre determinação divina põe em xeque a meritocracia no que diz respeito aos que sobreviveram ao dilúvio.
Penso que isso nos ensina algumas lições e a principal lição que nos deixou foi exatamente esta: em algumas circunstâncias, ou períodos da sua história, o ser humano vive mais intensamente a sua fragilidade. Sente a plenitude da sua impotência.
Guerras, pestes, regimes ditatoriais tem revelado isso. A própria dengue, em algumas regiões, menos cuidadas do país, tem se revelado um verdadeiro dilúvio para a população. Ela nos intimida e depois paralisa. A pessoa com dengue perde a força, perde o apetite, perde o estímulo e pode vir a óbito.
Ela nos deixa com as perguntas: e se todos forem atacados pela dengue, alguém sobreviverá? Nesse caso, quem cuidará de quem?
Se o poder público não agir, não planejar ações, não investir maciçamente, quem será o vencedor? Se derrotarmos a dengue de quem será o mérito?
Fico pensando se o poder publico, com essa pouca atenção que dedica ao problema  não quer mesmo nos humilhar, destacar  a nossa impotência, nos dizer que  quem manda faz quando quer.
Não creio que o mosquito tenha pensado nisso, ou se tornado intencionalmente nosso inimigo. Ele apenas revela a impotência humana (leia-se: do povo, dos governados) diante da fúria (ou melhor: descaso) dos deuses  que foram eleitos pelo próprio povo.
Além dessa epidemia, há outros dilúvios que assolam a humanidade, que neutralizam o seu poder de luta, que anulam a sua vontade de vencer, que abatem as suas crenças e esperanças.
A ditadura em alguns países tem revelado isso claramente.
No Iraque de Saddam Husseim isso ficou muito claro no relato de Asne (Hosna) Seierstad.
Tendo feito a cobertura da guerra como correspondentes de uma rádio norueguesa viveu em Bagdá, um pouco antes, durante e um  pouco depois da guerra.
No período do pós-guerra  ouviu depoimentos de pessoas que, num misto de consolo e desconsolo,  admitiram que odiavam o invasor, mas não podiam ignorar que este lhes trouxe o benefício de depor o tirano.
Um iraquiano declarou que:
"-O que mais me envergonha- confessa Walid, um homem de negócios - é que perdemos a coragem. Depois de 35 anos de repressão, nós viramos uns covardes. Devíamos nós mesmos ter deposto o ditador, não devíamos ter deixado os americanos - suspira. -Eu nunca fui preso, mas todos fomos torturados mentalmente pelo medo que impregnava tudo. Só podíamos sussurrar entre nós, e até isso era perigoso. " (SEIERSTAD,  2007, p. 381)
A ditadura é um dilúvio que a todos amedronta, que domina pelo medo e que acovarda para que ninguém se manifeste contra o poder.
Se acompanharmos atentamente pelos noticiários ou conversarmos com quem viveu ou vive nesse contexto veremos o quanto as pessoas perderam (perdem)a vontade de se manifestarem, como estão carente de uma força interior que as motiva   a ter vontade de lutar. Perderam a luta contra a opressão.
Os regimes ditatoriais expõem a fragilidade do povo, zombam da sua impotência, colocam os mandatários no lugar de Deus, abusam do poder.
Isso também se percebe em algumas religiões organizadas hierarquicamente.
 
Antonio Sales   profesales@hotmail.com
Nova Andradina, 07 de março de 2013

Referência
SEIERSTAD, Asne. 101 dias em Bagdá.4.ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.