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quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

A OVELHA PERDIDA



No capítulo 15 do evangelho segundo Lucas encontramos uma parábola com o título “a ovelha perdida”. Com um texto resumido o título se torna ambíguo. Ele não diz claramente se a ovelha se perdeu voluntariamente, por se desviar do rebanho por “caprichos” individuais, ou se foi perdida por descuido do pastor que não deu atenção a uma ovelha que, por estar cansada, foi ficando para trás.
O leitor que tem uma atração especial pelo trágico logo imagina uma ovelha escorregando,  acidentalmente, despenhadeiro abaixo e chegando ao fundo do “abismo” com arranhões quase irreparáveis.  Esse leitor diz para si mesmo: viver é perigoso.
Um leitor moralista imagina a ovelha se rebelando e caminhando, propositadamente, por terreno perigoso até resvalar e cair no despenhadeiro tendo o mesmo fim daquela que caiu acidentalmente, porém com profunda carga de culpa. Esse leitor pensa no filho ou nalgum jovem conhecido e diz: está vendo o que acontece com quem se desvia do caminho? É isso que aguarda quem se perde: dor, muita dor. Talvez até pense no câncer, na AIDS ou no fogo do inferno e com um riso diabólico diz: ele vai ver.
No primeiro caso a ovelha bale pedindo socorro físico, clamando por resgate  e cura para os seu arranhões. No segundo caso a ovelha clama, primeiramente,  por perdão. Ela “remoe” um misto de dor física e moral e, nesse caso, os arranhões doem menos do que a culpa.
 Os pintores retratam essa imagem de uma ovelha no abismo, sem discutir as causas. São pintores com gosto pelo trágico. Querem enfatizar o amor de Jesus ou os perigos do afastamento?
Mas, a ovelha perdida pode não ter caído no abismo. Pode ter apenas ficado para trás. O texto não diz que ela estava ferida, ou irreparavelmente ferida. Estava em perigo, sem dúvida, porque animais ferozes percorriam os campos noturnamente em busca de uma preza e uma ovelha é um animal frágil. É como uma criança no trânsito de uma grande cidade.
Lendo, porém, o contexto encontramos informações que nos ajudam a imaginar um quadro um pouco diferente. Os versículos primeiro e segundo do mesmo capítulo  trazem a informação de que a discussão era sobre o fato de Jesus receber pecadores e comer com eles. Isto é, pelo fato de o Mestre dar atenção aos perdidos.
Se pararmos a leitura por aqui concluímos  que a parábola foi contada com a finalidade de dizer que os perdidos devem ser procurados, não importa a causa do desvio. Jesus estava dizendo que devemos sempre socorrer o ser humano e colocá-lo fora de perigo, pô-lo em condições de tomar novas decisões. É uma mensagem de aposta no ser humano. Parece que essa mensagem não é percebida pela maioria dos leitores.
Se continuarmos a leitura nos deparamos com a frase: Digo-vos, que assim haverá alegria no céu, por um pecador que se arrepende, mais do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento” (Lc 15:7).
Esta frase é chocante, contraditória com os princípios da moral, se a moral for entendida como sinônimo de conservação. Não é, porém, contraditória com os princípios da ética, porque esta está relacionada com a transformação.
Para transformar é preciso arriscar, ousar, sair da rotina. A ovelha imaginada por Jesus, ao que parece, foi uma ousada. Eu não diria que ela  foi maldosa, que se arriscou para provocar dor no pastor. Entendo que ela foi ousada porque resolveu tomar tempo para saborear calmamente  os pastos da região, observar os pássaros, olhar as flores e com isso distraiu-se e ficou para trás. Quando se deu conta clamou por socorro, mas não estava, necessariamente, ferida e nem havia, forçosamente, caído no abismo. Estava desamparada, temerosa  e precisava de amparo, mas não de castigo.
Tinha do que se arrepender porque a aventura dera trabalho para alguém, mas Jesus elogia-a por ter saído da rotina. A mensagem de Jesus aos fariseus parece ser: não tenho prazer no formalismo cego, o céu está cansado de cristãos que apenas repetem o que aprenderam. O céu não festeja a apatia, o medo e o dogmatismo. O céu almeja ver cristãos ousados que se arriscam a sair da rotina para fazer o que muitos outros não fazem.
Não pode se jogar no abismo propositadamente. O céu é contra a rebeldia ( Ap 12). Não pode errar com o propósito de ferir alguém, mas ele tolera e até aplaude os que erram na busca de novos caminhos, novas formas de agir, novo jeito de se relacionar ou um novo trabalho.
A parábola não foi contada para amedrontar, mas para dar esperança e incentivo à ousadia.
Campo Grande, 27 de dezembro de 2012-12-27
Antonio Sales                  profesales@hotmail.com

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

A LEI E O EVANGELHO



Estava participando de um estudo sob o tema acima. Fora escrito pelo teólogo Donkor (2012), um natural de Gana que, segundo o resumo da sua biografia, é diretor associado do Instituto de Pesquisas Bíblicas, em Silver Spring, Maryland (USA).
O texto propunha um estudo sobre a possível relação entre lei e o evangelho partindo do pressuposto de que tal relação existe.
No mesmo texto, em parágrafos posteriores, o autor afirmava que a lei não tem poder salvífico, isto é, que “a lei nunca foi planejada para ser meio de salvação" mas insistia em tentar estabelecer uma relação entre os dois.
Ora esse esforço parece não fazer sentido quando se considera  que o evangelho é o "poder de Deus para salvação de todo aquele que crê" (Rm 1: 16) e a lei  ou Torá significa, segundo mesmo Donkor, " instrução" ou "orientação" . Entendo que nessa perspectiva não há relação entre ambos. Quando vistos por esse ângulo, lei e evangelho, simplesmente, têm finalidades diferentes.
Não estamos propondo uma discussão sobre o valor lei. A importância tanto do evangelho quanto da lei não está em questão. A lei é boa, disse Paulo (Rm 7: 16), e o  evangelho é poder de Deus, disse o mesmo apóstolo.
Um deles, o evangelho, salva os que aceitam a salvação. A lei orienta o viver de todos, salvos e não salvos. Ela estabelece as regras relacionais entre os seres humanos. O evangelho é opção e a lei é obrigação.  O evangelho é convite, a lei é ordem.  O evangelho salva, a lei civiliza.  O evangelho muda o status espiritual do sujeito; a lei orienta as relações humanas, ensina viver em sociedade.  O evangelho é graça disponível, a lei é a ordem estabelecida.
Aceitar a salvação é opção pessoal, enquanto cumprir a lei é, em princípio, obrigação de todos. Sem essa obrigação o caos se instalaria.
Dessa forma, não vejo relação direta entre a lei e o evangelho. A lei não aponta para a salvação.
Para ilustrar o pensamento:
Imaginemos uma lei que regulamente as relações entre credor e devedor. Essa lei tem relação com o perdão da dívida? A reposta é sim, se ela contiver uma cláusula que estipule o direito ao perdão. Caso ela seja omissa, se deixa a critério do credor a decisão de perdoar, dizemos que ela não tem relação com o perdão porque não induz o devedor a ir em busca do perdão.
E o que acontece com a lei de Deus, especificamente com os Dez Mandamentos. Eles nada dizem sobre o evangelho, não estabelecem critérios para a salvação. Não dizem que o pecador tem direito à salvação e, dessa forma,  não o induzem a buscar o "poder" restaurador do evangelho.
Conclusão: não há relação direta entre a lei e o evangelho. Pode haver uma relação indireta quando se considera que a graça de Cristo tem poder transformador, isto é, produz no coração um apego ao bem, à ordem. Quando se pressupõe e que ela transforma o homem "selvagem" em ser humano, a lei entra como fator de educação (exerce a função de pedagogo segundo Paulo (Gl 3:24,25)). Mas considerando que a lei é para todos e a graça ou evangelho é para quem quer não se pode dizer que haja relação direta entre lei e evangelho.
Talvez possamos dizer que a graça direciona para o cumprimento da lei porque direciona o sujeito para uma vida de ordem, de busca pela vida em harmonia com a ordem moral estabelecida.
Essa ordem moral não se resume aos Dez Mandamentos. É toda orientação que facilita o relacionamento saudável entre os seres humanos no trânsito, na família, na  vizinhança, na administração de um empresa pública ou privada, no local de trabalho e até mesmo na igreja.
 O pensamento de que a lei direciona o sujeito para Cristo parece não fazer  sentido. O inverso é que deve acontecer.
No caso da transformação pela graça e o direcionamento da vida pela lei o que se discute é o efeito da graça e não o efeito da lei na salvação ou a relação que ela tem com a graça ou com o evangelho.
Dourados,  09 de dezembro de 2012.
Antonio Sales                                      profesales@ hotmail.com
 
DONKOR, Kwabena.  A  Lei e o Evangelho. In: DONKOR, Kwabena. Crescendo em Cristo. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012 (lição da Escola Sabatina de adultos, 1 a 8/12/2012, p. 66-72).

domingo, 18 de novembro de 2012

DEUS TRABALHA COM CERTEZAS?



No trato com os seres humanos é difícil ter certezas. Tudo pode mudar no decorrer do processo. Desejos mudam, opiniões mudam, preferências mudam e sonhos mudam, logo, expectativas mudam e planejamentos mudam também.
Com seres inanimados é mais fácil ter certezas. No reino mineral as coisas são mais previsíveis. Algumas leis parecem ser eternas. Pelo menos duram muito tempo.
No mundo ideal da Matemática as verdades são eternas. Os postulados são criados e os sistemas, neles fundamentados, permanecem indefinidamente.
A partir dos vegetais as incertezas se tornam mais presentes. A genética muda, as doenças se fazem presentes e o envelhecimento pode ser acelerado. A substituição decorrente da morte de um espécime traz incertezas.
Mas, nem Deus pode ter certezas no trato com o ser humano? A Sua onisciência não Lhe dá essa prerrogativa de prever cada passo a ser dado pela criatura? Essa previsão não Lhe permite ter certezas?
Pensemos um pouco  sobre essas questões. Suponhamos que seja possível ter certezas no trato com o ser humano. Vamos supor também que um casal ao planejar ter um filho já pudesse ter certeza do seu caráter, do seu aspecto físico e dos problemas físicos que lhe sobrevirão. Vamos supor que ao planejar esse filho o casal soubesse que ele viveria pouquíssimo tempo feliz e o restante da vida com dores lancinantes sem encontrar recursos que pudessem aliviar a sua dor. Consideraríamos justo esse casal insistir em gerar esse filho? E se soubessem, de antemão, que o recurso para aliviar essa dor viria do sacrifico de outro ser humano seria justo ainda gerar esse filho?
Sabemos que todo ato de amor é um ato de risco. Sempre que fazemos algo, movidos pelo amor, sabemos que há a possibilidade de algo dar errado, de ocorrer incompreensões, prejuízos, etc.. Essa possibilidade de dar errado não pode ser maior do que a possibilidade de dar certo. Se o erro for mais provável do que o acerto, a insistência em fazer ainda é um ato de amor? Não seria uma irresponsabilidade?
Pensemos no caso da criação. Se ao criar o ser humano Deus já tivesse certeza que Adão e Eva comeriam da árvore da ciência do bem e do mal e que, em decorrência disso, viria a morte de Abel, um dilúvio universal, a escravidão no Egito, mortes e estupros de inocentes, etc., e os tivesse criado assim mesmo não estaria sendo irresponsável?
Voltemos às nossas questões. Deus ao criar Adão e Eva, com o livre arbítrio, estava, ou não, praticando um ato de amor?  Ele tinha certeza de que  cairiam em pecado ou apenas sabia da possibilidade dessa ocorrência?
As providências redentoras tomadas por Ele tinham por base a certeza do fato ou apenas a previsão da possibilidade?  O livre arbítrio traz em si a certeza do erro ou apenas a possibilidade de ocorrência?
Podemos supor (penso que sem medo de errar) que Deus sabia da possibilidade do pecado, mas sabia também que a possibilidade de não ocorrer era maior e por isso arriscou.
Todo ato de amor é um risco, mas não pode ser um risco com mais de 50% de possibilidade e muito menos um “risco” certo.
Se defendermos que Deus sabia que ia dar errado e ainda assim criou o ser humano não estaremos contrariando a nossa crença na Sua justiça?
Campo Grande, 27/10/2012.
Antonio Sales    profesales@hotmail.com

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O BEM E O MAL- II




Como cristão aceito o credo evangélico de que o Bem é eterno e o Mal é contingente.  Concordo que devemos aceitar o Bem e rejeitar o Mal. O problema que não está claro para mim é até que ponto o mal é filho do Mal. Uma pessoa que faz um trabalho mal-feito não é, necessariamente, uma má pessoa, um mau caráter. O mal-feito pode ser apenas a imperícia de um aprendiz. Até que ponto um acidente fatal é produto do Mal? Não pode ser apenas um acidente, uma imperícia?
Penso que o mal que é produto do Mal é aquele que é resultante de um mau caráter.
Como creio no Evangelho de Jesus Cristo, isto é, na Boa Nova trazida por Ele, tento entender o problema à luz da graça e não das definições teológicas. A graça de Cristo, na minha perspectiva, tem poder “sedutor”. Ela nos “seduz” para a prática do bem embora não nos defenda dos dilemas éticos próprios de uma vida relacional que é conduzida pela reflexão sobre o que se faz.
Alguns definem o seu comportamento (digo melhor, julgam o comportamento dos outros) pelos dogmas. Esses não têm dilemas e, talvez, nem sentimento de compaixão. Outros definem o seu comportamento pelo comportamento do grupo ou da multidão. Também estes não têm dilemas e, talvez, nem autonomia para pensar.
Os que pensam sobre o que fazem se defrontam diariamente com dilemas onde o certo e o errado se misturam. Quando é certo proteger um animal e, ao mesmo tempo, é certo sacrificá-lo para alimentar um ser humano e evitar que este morra de inanição, o dilema se faz presente. Quando é certo oferecer o melhor em um culto de adoração a Deus e, ao mesmo tempo, é certo envolver pessoas inexperientes (que quase sempre erram) nessa adoração o dilema se evidencia.
Falo desse mal que não é gerado pelo Mal e penso que neste aspecto a tolerância tem lugar, o mal e o bem devem conviver lado a lado e se complementarem. Creio que nesta perspectiva o mal é o prelúdio do bem e ambos são filhos do Bem porque gerados pela mesma mensagem evangélica que prega o respeito, o bom senso e a compaixão.
A ideia de que todo mal é mau, de que toda pessoa que erra tem mau caráter é a causa de intolerância para com as pessoas. Esse é o problema de muitos relacionamentos, a causa de muitos discursos amedrontadores e de muitas bombas lançadas sobre inocentes.
Creio no cumprimento da promessa feita a Adão e Eva que Deus poria inimizade entre o seu descendente e as insinuações da serpente (Gn 3:15). Creio que a graça tem produzido vidas novas que não temos conseguido cultivar por termos ideias equivocadas sobre o plano de Deus. Ela tem produzido novos sentimentos que não temos conseguido alimentar por estarmos apegados a ideias preconcebidas.
O dogmatismo cega, o fundamentalismo degenera e agride, a graça renova e produz tolerância.
Por fim, creio que o mal (o que não é produzido pelo Mal) deve ser superado, mas não visto como um inimigo ao qual se declara uma guerra implacável. Deve ser superado porque é parte de um processo; é como o andar trôpego de uma criança que precisa ser aperfeiçoado ou como o ensaio de um aprendiz que caminha para profissionalização.
Logo, esse mal é um bem em estagio inicial de formação.
Por sua vez, o mal que é produzido pelo Mal, deve ser combatido porque o mau caráter deve mesmo ser detestado e corrigido com todas as nossas forças.
Antonio   Sales    profesales@hotmail.com
         Campo Grande, 14 de outubro de 2012.