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sábado, 23 de novembro de 2013

A CABEÇA E O CORPO (parte 2)




Em texto anterior escrevi sobre cérebros que se dão o direito de viver mesmo confinados em um corpo que podemos considerar sem vida, como é caso de quem sofre de ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica). O corpo fica rígido e imóvel, parece mesmo petrificado, mas o cérebro continua produzindo, sentindo, vivendo, amando, sonhando, requerendo o prolongamento da vida e, com a ajuda da tecnologia, se conectando com o mundo tanto familiar quanto o macro mundo das redes sociais.
Citei superficialmente os casos de corpos desgovernados, dos corpos que não cumprem as ordens do cérebro, mas que abrigam um cérebro cheio de vida. Um cérebro vigoroso que ama, sonha e, sobretudo, que não desiste de tentar comandar o corpo. São cérebros lúcidos, com alvos definidos, involucrados em corpos sem rumo. Cérebros que além de não desistirem da sua função de comando produzem verdadeiras pérolas de sabedoria. Não cedem diante dos obstáculos, insistem e lutam enquanto o oxigênio lhes abastecer.
Uma adolescente da APAE emocionava a todo ao falar do seu sonho em ser bailarina enquanto ensaiava uma dança tentando vencer a dicotomia entre a cabeça disciplinada e o corpo rebelde.
Recentemente li o caso de Herman Wallace, o homem que ficou preso por 41 anos em uma solitária americana. Durante os últimos 15 anos, diz a nota(*), ficou enclausurado uma média de 23 horas por dia em um espaço de 6 metros quadrados e sem contato afetivo com qualquer outra pessoa.
Uma situação como essa atrofiaria o físico e o cérebro de qualquer outra pessoa, mas não o de Wallace. Com os jornais que recebia mantinha-se atualizado, conectado com om mundo e ainda fazia exercícios de levantamento de peso para manter o físico em forma. Procurou manter correspondência com o exterior através de cartas e assim se manteve até que o câncer no fígado o levou ao hospital penitenciário.
Foi preso por pertencer ao grupo PPN (Partido dos Panteras Negras) que defendia o direito dos negros. Depois acusado de assassinar um guarda prisional foi cumprir pena na solitária.
Quando estava no hospital recebeu a notícia de que estava livre uma vez que não havia provas de que fora o assassino. Ao receber a noticia do alvará de soltura inicialmente não acreditou e depois disse apenas: "agora estou livre". A sua advogada informou que ele manteve a compostura, técnica que desenvolvera para sobreviver e, momentos depois, acrescentou: "o isolamento é a pior coisa que podem fazer a um ser humano".
Muitos suicidam na solitária usando métodos rudimentares, mas o cérebro de Wallace se recusou a morrer, recusou ceder o seu espaço e manteve o controle da situação ainda que extremamente adversa. Ele decidiu que era melhor viver mesmo sofrendo injustiça, do que fugir da vida para não ver a injustiça.
Gosto de ler sobre pessoas que não desistem. Aprecio ainda mais aquelas que superam as dificuldades físicas ou sociais como também os contratempos emocionais e, finalmente, se apresentam sem magoas. São pessoas adultas de verdade e eu as invejo. Desejo imita-las, embora sem muito sucesso. Não obstante, elas são o meu modelo, a minha inspiração. São os meus ídolos.
Antonio Sales                 profesales@hotmail.com
Campo Grande, 04 de outubro de 2013.

(*) A história do homem que passou 41 anos na solitária nos EUA. http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/10/131003_confinamento_prisao_rp.shtml. Acesso em 04/10/2013.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A MEMÓRIA AUDITIVA




 O Dr Paul  Brand, cirurgião ortopédico, que atuou por muito anos como medico missionário na Índia, descreve com admiração, respeito e de forma quase poética os nossos sentidos. Com relação ao ouvido revela um profundo encantamento pelos ossos (martelo, bigorna e estribo) que intensificam os sons que recebemos e através de um meio aquoso o transmite ao cérebro. O ouvido dos animais tem ainda maior eficiência  do que nos seres humanos. A coruja, por exemplo, de olhos vendados, consegue perseguir e capturar um rato rastreando-o pelos sons emitidos por suas  patas ao correr no capim seco.
Mesmo tendo um ouvido mais limitado do que o deles ainda conseguimos distinguir os sons de duas buzinas diferentes, de dois carros de marcas diferentes e até mesmo saber qual  está mais próximo.
Ao terminar a sua exposição sobre o ouvido o medico fala da memória auditiva. Somos capazes de reproduzir, para o nosso consciente, sons ouvidos  em tempos anteriores. Durante dias continuamos a ouvir uma sinfonia executada por uma orquestra, o som do sorriso do nosso filho ou a voz da pessoa amada. Particularmente, constatamos que  durante anos ainda conseguíamos ouvir o som da corneta que ditava algumas ordens enquanto prestávamos serviço militar em  1965.
Diz o Brand: "não há nenhuma força, nenhuma vibração de moléculas, nenhum golpe sobre as células receptoras de som, mas ainda assim posso ouvi-los. Minha mente  recria os sons exteriores existentes, apenas no complexo  das células  nervosas comprimidas  em cada centímetro  cubico de massa branca".
Posso ouvir o que já foi ouvido, reproduzir esses sons. Isso é maravilhoso e assustador o mesmo tempo. Reproduzir os sons da corneta anunciando o rancho, o silencio ou a alvorada é extremamente agradável. Por outro lado, ouvir os toques de "em frente", "direita, esquerda ou meia volta volver" sob o sol escaldante de Corumbá (MS) não é tão agradável assim. Ouvir o toque de "acelerado", muito frequente naquele primeiro ano da "revolução" de 64, ou  quando a banda tocava a marcha de guerra, ainda acelerava  os batimentos cardíacos muito tempo depois desses sons estarem distantes, no passado.
Penso na vida. Penso em pessoas que após muito tempo ainda ouvem  os passos do progenitor bêbado chegando em casa, as condenações  emanadas de algum púlpito, as ameaças de algum  professor, os grito da mãe pedindo socorro ao ser agredida,  os xingos da mãe e a sirene do bombeiro que veio em seu socorro quando estava acidentado e sentindo o cheiro  da morte.
Penso nos cônjuges que durante todo o dia, mesmo distante, ouvem a voz condenatória do outro, as reprimendas e as intrigas. Penso nos apelidos de escola que focalizam exatamente os nossos pontos fracos. Penso na lavagem cerebral que se faz nos  jovens em algumas denominações religiosa e como muito tempo depois eles ainda ouvem as "denúncias" e murmurações sobre o mundo, as parábolas mal contadas para amedrontar, as ameaças de perdição e as acusações de que estão decepcionando a Deus.
Essa dor dura enquanto a lembrança durar. A insegurança que disso resulta não pode ser calculada porque as lembranças variam de pessoa para pessoa.  O que podemos fazer é evitar provocar tais lembranças em nossos filhos.
Antonio Sales             profesales@hotmail.com
Dourados, 28 de setembro de 2013.

BRAND, Paul; YANCEY, Philip. À imagem e semelhança e Deus.São Paulo:Editora Vida, 2007.