Há
circunstâncias na vida que põem em destaque a nossa fragilidade. A morte é uma
delas e talvez seja a mais comum. Há, no entanto, tantas outras que muitas
vezes nem são pensadas. Pensemos em algumas delas.
O câncer,
por exemplo, que ainda traz um “gosto” de maldição no próprio nome. É um nome
que assusta e ainda desafia a ciência apesar dos avanços significativos nessa
área.
O
registro bíblico do dilúvio universal é outro
desses elementos que nos expõem. Segundo
o referido relato a terra foi devastada
sem que nenhum ser humano pudesse fazer algo por si mesmo ou uns pelos outros.
Uns poucos sobreviveram, mas os méritos
científicos e tecnológicos não pertenciam a eles. Em tudo dependeram de Deus.
Até mesmo para projetar a arca, para fechar a sua porta e para abri-la depois.
Talvez
alguns méritos morais lhes fossem próprios, mas para por ai a questão da meritocracia.
Todo o resto foi mérito de Deus. A teoria da graça divina e da livre
determinação divina põe em xeque a meritocracia no que diz respeito aos que
sobreviveram ao dilúvio.
Penso que
isso nos ensina algumas lições e a principal lição que nos deixou foi exatamente
esta: em algumas circunstâncias, ou períodos da sua história, o ser humano vive
mais intensamente a sua fragilidade. Sente a plenitude da sua impotência.
Guerras,
pestes, regimes ditatoriais tem revelado isso. A própria dengue, em algumas
regiões, menos cuidadas do país, tem se revelado um verdadeiro dilúvio para a
população. Ela nos intimida e depois paralisa. A pessoa com dengue perde a
força, perde o apetite, perde o estímulo e pode vir a óbito.
Ela nos
deixa com as perguntas: e se todos forem atacados pela dengue, alguém
sobreviverá? Nesse caso, quem cuidará de quem?
Se o
poder público não agir, não planejar ações, não investir maciçamente, quem será
o vencedor? Se derrotarmos a dengue de quem será o mérito?
Fico
pensando se o poder publico, com essa pouca atenção que dedica ao problema não quer mesmo nos humilhar, destacar a nossa impotência, nos dizer que quem manda faz quando quer.
Não creio que o mosquito tenha pensado nisso, ou se tornado intencionalmente nosso inimigo. Ele apenas revela a impotência humana (leia-se: do povo, dos governados) diante da fúria (ou melhor: descaso) dos deuses que foram eleitos pelo próprio povo.
Não creio que o mosquito tenha pensado nisso, ou se tornado intencionalmente nosso inimigo. Ele apenas revela a impotência humana (leia-se: do povo, dos governados) diante da fúria (ou melhor: descaso) dos deuses que foram eleitos pelo próprio povo.
Além
dessa epidemia, há outros dilúvios que assolam a humanidade, que neutralizam o
seu poder de luta, que anulam a sua vontade de vencer, que abatem as suas
crenças e esperanças.
A
ditadura em alguns países tem revelado isso claramente.
No Iraque de Saddam Husseim isso ficou muito claro no relato de Asne (Hosna) Seierstad.
No Iraque de Saddam Husseim isso ficou muito claro no relato de Asne (Hosna) Seierstad.
Tendo
feito a cobertura da guerra como correspondentes de uma rádio norueguesa viveu
em Bagdá, um pouco antes, durante e um
pouco depois da guerra.
No
período do pós-guerra ouviu depoimentos
de pessoas que, num misto de consolo e desconsolo, admitiram que odiavam o invasor, mas não
podiam ignorar que este lhes trouxe o benefício de depor o tirano.
Um
iraquiano declarou que:
"-O
que mais me envergonha- confessa Walid, um homem de negócios - é que perdemos a
coragem. Depois de 35 anos de repressão, nós viramos uns covardes. Devíamos nós
mesmos ter deposto o ditador, não devíamos ter deixado os americanos - suspira.
-Eu nunca fui preso, mas todos fomos torturados mentalmente pelo medo que
impregnava tudo. Só podíamos sussurrar entre nós, e até isso era perigoso.
" (SEIERSTAD, 2007, p. 381)
A
ditadura é um dilúvio que a todos amedronta, que domina pelo medo e que acovarda
para que ninguém se manifeste contra o poder.
Se
acompanharmos atentamente pelos noticiários ou conversarmos com quem viveu ou
vive nesse contexto veremos o quanto as pessoas perderam (perdem)a vontade de
se manifestarem, como estão carente de uma força interior que as motiva a ter vontade de lutar. Perderam a luta
contra a opressão.
Os
regimes ditatoriais expõem a fragilidade do povo, zombam da sua impotência,
colocam os mandatários no lugar de Deus, abusam do poder.
Isso
também se percebe em algumas religiões organizadas hierarquicamente.
Antonio Sales profesales@hotmail.com
Nova
Andradina, 07 de março de 2013
Referência
SEIERSTAD, Asne. 101 dias em Bagdá.4.ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.
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