Aparentemente nada é mais triste, mais grotesco, mais indicativo da estupidez humana do que uma guerra. Milhões de dólares gastos em destruição, milhares de vidas ceifadas, cidades arruinadas, monturos para serem removidos depois, ruínas para serem reconstruídas, escolas fechadas, hospitais abarrotados, valas com restos humanos putrefatos, prostituição por excesso de carência e tantas outras mazelas são os resultados de uma guerra. Pode haver algo pior do que ela?
Quando ainda garoto li em
um livro escolar uma lição que falava sobre a guerra, isto é, sobre a
dor provocada por uma guerra. Com habilidade o autor do texto provocava nos leitores jovens um certo horror por essa prática ao
destacar que as guerras ceifam vidas jovens, tiram os filhos do colo materno e
os leva para morte no front. Falava do choro dessas mães,
falava das jovens noivas que ficavam viúvas antes de se casarem porque os
noivos partiam sem perspectivas de voltar com vida. Falava dos filhos que
ficavam sem pais e das mães jovens que
choravam a partida do esposo e pai. Falava da escassez decorrente dos cercos,
do choro das crianças famintas e assustadas com os estrondos das bombas e dos
tiros de armas leves ou pesadas. Falava
do desespero dos avós ao verem os netos partirem para o campo de batalha e as netas se desesperarem ao verem os seus
sonhos de um lar se desfazerem com a partida do amado.
Tempos depois li “confissões
do front” de Costa ( 2012 ) e conheci
um pouco da vida dos pracinhas da FEB ( Força Expedicionária Brasileira) que
lutaram na Itália. Os riscos, a
valentia, a desolação e a exploração do povo sofrido e devastado, especialmente das mulheres que se entregavam
a eles em troca de alguns centavos que pudessem prover alimento para elas e
suas famílias ficam evidentes no livro.
Depois de tudo isso eu
não tinha dúvidas de que a guerra é o pior dos males que o ser humano pode
provocar. Nada seria mais estúpido, nada seria mais brutal, nada seria mais
irracional.
Minha opinião mudou
quando li Seierstad (2007) uma correspondente de guerra que fez a cobertura da
guerra no Iraque para uma rádio norueguesa. Passado o período do bombardeio a
jornalista ficou ainda uns dias em Bagdá e ouviu o povo. Os depoimentos são
surpreendentes.
Ela ouviu que uma
jornalista de moda feminina em uma conversa ente colegas fez um comentário pouco lisonjeiro sobre as roupas da esposa de Saddam
Hussein. Poucas horas depois a polícia capturou-a e no dia seguinte seus pais a encontraram na
porta da casa com o “corpo negro e azul por causa da surra, com queimaduras de
cigarro e a língua cortada”( p. 380). As pessoas tinham cuidado com o que
diziam aos próprios filhos e amigos. Viviam assustadas, tinham medo de todos.
O iraquiano Muayad revelou que não tinha apreço pelos americanos, mas
estava feliz por eles terem invadido o Iraque porque agora ele podia falar livremente. Contou à Seierstad
que quando criança questionou a professora na escola e foi advertido: “isso
pode ser perigoso”. Disse ainda que um amigo seu contou uma piada sobre Saddam
no pátio da universidade e no dia seguinte ele e sua família tinham
desaparecido para sempre. Confessou que tinha se tornado um mentiroso,
elogiando o regime, apenas para sobreviver. Fingia ser feliz e gostar do
regime. Agora podia falar a verdade e por isso achava que a invasão americana tinha um saldo positivo.
Diante do exposto penso
que pode haver algo pior do que a guerra: a falta de liberdade. Um clima de medo
prolongado pode ser pior do que a guerra. Um ambiente de plena insegurança pode ser pior
do que a guerra.
Uma mulher contou que
um dia o marido saiu para o trabalho e não voltou. Foi informada de que fora detido pela polícia, mas quando foi à
delegacia em busca de informação o
delegado não lhe dispensou atenção e apenas
disse e não saber de nada. Voltou no outro dia apenas para ouvir que não
se deve fazer a mesma pergunta duas vezes. Tentou uma terceira vez e o policial
ficou furioso. Mandou que fosse para
casa e esperasse para que algo pior não lhe acontecesse.
Vinte anos se passara e
a pobre mulher ainda alimentava esperança de que o esposo estivesse preso em
alguma masmorra e que os americanos pudessem libertá-lo. Os filhos não
acreditavam na hipótese de rever o pai, mas para aquela esposa havia algo pior
do que a guerra: o desaparecimento de um ente querido sem explicação. A ameaça constante e por tempo prolongado, a
desestruturação do lar sem explicação e o rompimento brutal dos laços familiares eram coisas piores do que a
guerra.
A ditadura de Hussein,
para muitas famílias, tinha sido a
“encarnação do mal”( p.357). Isso ficou claro para a jornalista quando alguém
lhe perguntou se o que ia escrever poderia “ajudar a encontrar os nossos entes
queridos” (p.357).
Outro senhor disse que
ficou três meses preso sendo acusado de participar de um movimento do qual
nunca ouvira falar e concluiu: “fui o único do grupo que saiu dali”. Para ele havia algo pior do que a guerra: ser
acusado de algo que não deve e ainda ser
morto por isso.
Depois dessa leitura
fiquei pensando em que mais poderia ser pior do que a guerra e agora não penso
em guerra apenas como sinônimo de conflito bélico. Penso em guerra como
qualquer conflito declarado, qualquer decisão que põe em risco uma suposta tranquilidade.
Será que se submeter a
um pai violento, abusador, não é pior do
que uma guerra? Essa submissão não seria pior do que um conflito
declarado, ainda que disso resulte penúria
e morte? Talvez outros sejam redimidos
pelo sangue da vítima.
Se uma escola impõe aos
alunos o estudo de um conteúdo com um
professor que usa uma abordagem que o
torna carente de sentido o que seria
pior: a submissão ou a guerra? Se a
postura de um professor se torna intolerável a submissão seria melhor do que a
declaração de guerra? Não será por isso que alguns alunos se tornam faltosos? Não seria essa rebeldia uma solitária declaração
de guerra?
Se um relacionamento é
marcado pela ausência do diálogo, pela falta de confiança mútua, pela marcação
cerrada de um sobre o outro, será que a declaração de guerra através do
divórcio não é a melhor saída?
São questões que não
precisam ser respondidas, apenas pensadas.
Nova Andradina, 18 de março de 2013
Antonio Sales profesales@hotmail.com
Referências:
COSTA, Helton. Confissões do
Front: soldados de Mato Grosso do Sul na II Guerra Mundial. Dourados, MS:
Arandu, 2012.
SEIERSTAD,
Asne. 101 dias em Bagdá. 4.ed. Rio
de Janeiro: Record, 2007.
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