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sexta-feira, 6 de abril de 2012

PÁSCOA, O COMEÇO DEPOIS DO FIM



Estamos na semana em que tradicionalmente se comemora a páscoa cristã. A páscoa cristã lembra morte e ressurreição de uma pessoa. Diferentemente desta, a páscoa judaica, lembrava a morte de um animal (do cordeiro) e a mudança de status (de escravos para livres) das pessoas.
Se não tivermos cuidado nos deteremos  nos dois fatos extremos da vida  sem nos determos ao meio, isto é, ao processo de viver, ao que ocorre entre o começo e o fim da vida.
Tenho procurado discorrer sobre o processo e hoje peço a permissão para me deter nesses dois momentos sublimes da existência: começo e fim. Mais precisamente sobre o fim e o (re)começo.
Curiosamente a páscoa aproximou o fim do começo, na ordem inversa.  A ressurreição fala de reversibilidade, nos diz que nada é definitivo e mostra que a morte pode não ser o fim. Até mesmo a morte pode ser revertida. A liberdade pode voltar a ser vivida e a dignidade pode ser (re)conquistada.
É curioso que Cristo tenha  aproximado os dois extremos, colocado um bem perto do outro. A última hora e a primeira hora ficaram muito próximas  nesses momentos finais da Sua jornada terrena.  A distância que as separa está tão próxima que se parece com história da vida humana que não passa de um pequeno hiato entre dois importantes acontecimentos: nascimento e morte.  A diferença é que a ressurreição colocou o nascimento depois da morte.  A primeira hora depois da última.
Será que Ele queria nos falar de restauração depois da queda?
Na páscoa judaica a libertação seguiu imediatamente à morte do cordeiro, na páscoa cristã há um hiato (um espaço para reflexão, reavaliação) entre  a morte e a vida (queda e restauração). Na páscoa judaica a libertação social (mais física do que social) estava determinada. Na páscoa cristã a liberdade espiritual e erguimento moral é uma escolha individual, razão do hiato para reflexão.
Ressurreição é vida que lembra morte, porque vem depois dela. Se alguém ressuscita é porque morreu. Esse é um contexto em que a lembrança da morte não é traumática, é alegria. Superar traumas, deslizes morais e vacilos éticos (como no caso do filho pródigo) é sempre dignificante, como será  dignificante ressurgir em um corpo glorificado no último dia.
Ressurreição é vida, mas é vida em potencial. Ainda não é vida em ato, exceto para uns  poucos que já a experimentaram definitivamente (Mt 27:52,53). Para nós, é potencialidade, mas ainda não é realidade. Da mesma forma, superar crises morais ou emocionais, como o enveredar–se pelas drogas, é uma possibilidade que pode não se tornar realidade para muitos. Há, no tratamento, um potencial de restauração, mas não uma certeza de cura.
Enquanto a ressurreição não se torna vida em ato, para nós, temos que nos preocupar com a última hora, com a despedida daquela pessoa e daquilo (nossa vida) que mais amamos.
O que fazer nessa última hora, o que dizer a quem está vivendo-a? Para responder a essa intrigante pergunta recorro ao psiquiatra cristão Tournier(1988). Ele discorre sensivelmente sobre esse tema ao falar da sensibilidade da mulher diante da necessidade humana. Fala da sua dificuldade como psiquiatra em lidar com o problema, em relação aos seus pacientes,  até que se deparou com o momento final da sua esposa.
Estava ao lado de sua esposa no leito hospitalar nos últimos momentos da sua vida, quando ela lhe perguntou se era verdade que havia o temor de que ela sofresse um novo enfarte.  Quando ele disse que sim ela completou, "nesse caso certamente morrerei". Um segundo depois ela tomou ânimo, tocou em seu braço  e disse: " se tivesse morrido há um mês estaria no céu e teria  conhecido os teus pais ".
Ele, sem fugir do assunto, respondeu:  "quando encontrá-los eles te agradecerão  por ter sido, para o filho deles, a mulher que foi".
Minutos depois ela pôs a mão sobre o peito  e disse: "chegou a hora".
"Você tem certeza?", perguntou ele.
Ela respondeu: "sim". E morreu.
Ele conta no mesmo capítulo a experiência de uma médica que se especializou em dialogar com os agonizantes. Ela percebeu que na hora agonizante os doentes sentem-se desamparados pelas mentiras que lhes contam os familiares, pelas fugas, pelas evasivas.
Um dia a médica foi chamada para assistir ao seu próprio pai agonizante. Sendo filha, foi dominada pela emoção e procurou fugir do assunto, falando de outras coisas para diverti-lo. Quando se deu conta de que estava fugindo e que seu pai sabia que estava sendo enganado foi direto ao ponto.
Disse-lhe: "pai, porque estamos falando dessas coisas? você sabe porque me chamaram".
  Nesse momento as línguas se desataram e falaram francamente do assunto, recordaram bons momentos da vida, o quanto um foi importante para o outro.
Dessa forma, aqueles momentos que poderiam ser de enganação foram momentos, segundo ela, maravilhosos. Foi uma despedida digna.
Deveríamos usar da mesma franqueza com quem decresce em sua vida moral ou espiritual?
Dourados, 06 de abril de 2012
Antonio Sales    profesales@hotmail.com
Referência
TOURNIER, Paul. A Missão da Mulher. São Paulo: Vértice; Editora dos Tribunais, 1988.

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