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sábado, 26 de outubro de 2013

PREFIRO O PERIGO DOS MORROS AO CONFORTO DOS CEMITÉRIOS




Tenho vontade de viver uma vida equilibrada, dinâmica e segura, mas se o equilíbrio for impossível, prefiro o estresse ao comodismo. Gostaria de fazer tudo conforme as normas de uma vida saudável, de uma vida com boa qualidade, mas, se isso for impossível, prefiro o cansaço à ausência de afazeres.
Em recente viagem que fiz a Montevidéu, encantado com a organização do trânsito, com a aparente tranquilidade das pessoas que caminham sem pressa, perguntei a alguém de lá se havia favela na cidade. Queria saber se tudo funcionava bem por lá ou se aquela tranquilidade era apenas para alguns. Temos favela, disse a pessoa, e fica no morro. Em seguida, supondo que eu estivesse interessado em visitar o local, acrescentou: não aconselho que visite sozinho. É muito triste ver pessoas morando em casas com paredes de lata em um local sem saneamento básico. É também um local perigoso. Concordei mas fiquei pensando: e se eu tivesse perguntado pelo cemitério, o que ela me diria? Guardei a pergunta.
Quando em 2012 visitei Sucre, a capital constitucional de Bolívia, encontrei um casal de brasileiros, ambos professores. Ela, professora de História, recomendou que visitasse o cemitério da cidade. É uma fonte histórica, disse ela. Segui o conselho e encontrei um local luxuoso onde mesmo depois de mortas as pessoas se diferenciam pelo poder aquisitivo que tinha ou que os familiares mantêm. Os mausoléus enfeitados e bem cuidados transmitem uma mensagem de poder, refletem as profundas diferenças sociais passadas e presentes.
Porém, enquanto estava lá senti um tédio profundo. Cemitério não tem vida, ele é nostálgico. Ele fala do poente da vida. Sua "poesia" é saudosista.
Prefiro o fervilhar de uma favela. Deve ser por isso que os desabrigados preferem se aglomerar na encosta de um morro, correndo o perigo de um desabamento, a armar as suas barracas entre os túmulos de um cemitério. O estresse é preferível ao tédio.
Em Assunção, capital do Paraguai, visitei, em 2011,  o museu paleontológico. Fiz uma visita rápida e à saída disse para o meu filho: esse museu deve ser muito importante, mas me causa desconforto. Prefiro o fervilhar da vida aqui fora. Senti o  mesmo desconforto em 2013 quando visitei as Catacumbas de São Francisco em Lima, Peru.

Em Punta Arenas, no Chile, visitamos meu filho e eu, a "pinguinera".  No entardecer os Pinguins  de Magalhães saem do Oceano Pacifico rumo às tocas em terra firme. Estão agitados, alegres, e era época de procriação. Fiquei encantado com a vida naquele ermo. Meus olhos não se cansavam de ver o movimento, a marcha dos pinguins. A vida me atrai.
O melhor seria o equilíbrio, a alternância entre estresse e descanso, mas na ausência dessa hipótese o estresse é preferível. É preferível ter um ataque cardíaco provocado pelo estresse, a morrer em longa velhice olhando para traz e dizendo: nada fui ou nada fiz.
Possivelmente muitos discordarão de mim, mas saibam que também discordarei deles. Muitos compartilham das minhas ideias, são parceiros numa vida produtiva. É graça aos que não se acomodam que temos aviões, carros, bicicletas, computadores, energia, água encanada e tratada.  É graças aos que não se acomodam que temos cura da muitas doenças, técnicas cada vez menos invasivas de cirurgia, sofisticados equipamentos hospitalares, pesquisas em abundância, escolas para todos e direitos nunca dantes imaginados.
Pelos que preferem a calma sepulcral e a ausência de estresse talvez ainda estivéssemos caçando para sobreviver e morando em cabanas cobertas por couro de animais ou folhas de palmeiras.
Sonho com uma vida calma, equilibrada, com um ritmo produtivo não estressante. Porém na ausência de tudo isso prefiro o estresse.
Entre o cemitério e o morro agitado, prefiro o morro.  Claro que viveria melhor se o movimento fosse mais ordenado e menos cansativo. Se não houvesse favelas seria bem melhor.
 Campo grande, 12 de outubro de 2013.
Antonio Sales                    profesales@hotmail.com

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

ENTRE O TÉDIO E O ESTRESSE

Conversava certo dia com a minha filha como sempre fazemos. Discutíamos vários assuntos quando a questão religiosa veio à tona. Falávamos sobre o Céu como destino de muitos ou esperança de todos quando ela se expressou mais ou menos com essas palavras: se o céu for um lugar só para tocar harpa será um terrível tédio para mim. Concordei.
 Embora goste de fazer um pouco de barulho com um clarinete não sou apaixonado ao ponto de querer ficar o dia todo tocando. Prefiro ler, escrever, debater ideias e, eventualmente, "trabalhar", isto é, fazer trabalho braçal. Gosto de dar aulas de Matemática, fazer turismo cultural, fotografar, provocar os jovens estudantes a uma reflexão, participar de reuniões de conselhos municipais, coordenar reuniões de debates, brincar com crianças, fazer caminhadas e viajar de moto.
Gosto de atividades diversificadas e um pouco desafiantes. De tudo um pouco. Tudo que demora muito tempo me entedia. Até mesmo a visita ao shopping não pode ser muito prolongada.
Diante disso fiquei pensando: deve ser por isso que prefiro o movimento da cidade grande ao aconchego da cidade pequena. Prefiro o desafio da produção acelerada ao comodismo de fazer cada vez menos. Prefiro o estresse ao tédio.
Comecei a pensar no céu como a Ágora dos gregos. Como aquele ponto de encontro onde os cidadãos, os homens livres, se reuniam para discutir política, filosofia, ciência, religião e assistir a peças de teatro que representavam as tragédias da vida.
A partir dessa reflexão fiz o meu próprio retrato do céu.  
Considerando que nessa época (ou nesse local que chamamos de céu) todos seremos livres do temor, dos preconceitos, das vicissitudes da vida e da ganância, imagino o céu como a própria terra livre da violência, da droga, da corrupção e do egocentrismo. Imagino que haverá espaço para os debates teológicos, científicos e filosóficos. Imagino que também haverá espaço para os que gostam de cultivar flores, horta, árvores frutíferas e bosques assim como para os que gostam, de cuidar de animais, cantar em corais, tocar em orquestras e exercitar a arte da pintura e da escultura.
Imagino que seja um local (ou uma época) onde haverá cooperação e ausência de competição até mesmo nos esportes que serão praticados para deleite dos que apreciam a cultura física.
O céu, para mim, é um local onde haverá espaço para todos  que estiverem dispostos a cooperar para o bem da comunidade, para o bem de todos. Será um espaço de respeito mútuo.
Imagino que onde não há ganância e nem comodismo há cooperação. Onde não há  corrupção, há espaço para a esperança, para a crença no ser humano e disposição para a partilha.
Não havendo egocentrismo não haverá exploração ou dominação.  Não havendo dominação não haverá trabalho escravo. Havendo cooperação não há necessidade de controle sobre as pessoas. Enfim, o ambiente será de respeito e ações voluntárias.
Onde impera o respeito não há espaço para discórdia, intolerância, abusos, chantagens, exibicionismo, imposições.
Esse é meu retrato atual do céu, do lugar dos remidos. Para mim é ausência de medo, de preconceitos, de ódio, de insegurança, de exploração, etc.
Talvez eu não chegue a cantar no céu porque não aprendi a cantar aqui, mas respeitarei os  que cantam.  Talvez eu prefira andar a pé no céu, como prefiro andar aqui, mas serei respeitado pelos que andam de carro e os respeitarei também. Talvez eu prefira estudar, viajar, participar de ambientes acadêmicos, como prefiro aqui, mas cooperarei com o agricultor, com o artista, com o construtor etc., procurando amenizar o esforço de cada um. Talvez juntos partilhemos do ócio produtivo.
Este é meu retrato do céu, ou melhor, retrato da Nova Terra como consta no Apocalipse (Ap 21).
Antonio Sales                                        profesales@hotmail.com
  Campo grande, 12 de outubro de 2013.




sábado, 12 de outubro de 2013

O CONFLITO



Muitos discursos religiosos começam situando nossa vida no contexto do conflito cósmico. Tratam do problema no âmbito espiritual, como se o conflito só existisse no mundo dos espíritos. Mas o conflito é real. É uma batalha contínua do bem versus o mal.
Em cada momento vemos a batalha sendo travada e ora o mal supera o bem e ora o bem supera o mal. Em cada momento em cada lugar da terra você encontra um exemplo dessa luta.
Aqui é alguém doando sangue para um desconhecido. Nesse momento e nesse lugar o bem está superando o mal. Ali é uma mãe que acaricia o filhinho,  sorri feliz e diz para ele que o papai está chegando. Ouço, nesse momento, o pai batendo na porta, sóbrio, sorridente e os três se unem num amplexo profundo de paz. É o bem superando o mal.
Ali vejo alguém devolvendo carteira que ele achou com tudo que tem dentro. O bem superou o mal mais uma vez. Vejo um trabalhador atuando com honestidade, um médico salvando a vida de um pobre na sala de cirurgia, o enfermeiro dando atenção a todos sem levar em conta a classe social, o sexo, a cor e a religião. Vejo o bem superando o mal com muita frequência.
Vejo um mecânico se firmando como alguém de confiança de mercado, um terapeuta cobrando taxa social para poder atender o pobre, um professor preparando com cuidado a sua aula para atingir o maior número de crianças com a sua didática. Vejo o bem se sobrepondo ao mal.
Olha mais além e vejo crianças morrendo de fome, vejo a guerra fraticida usando armas químicas contra civis. Vejo um jovem sendo morto a tiros na esquina porque, nervoso, não conseguiu entregar o seu celular; vejo um ancião sendo atropelado por um motorista embriagado; vejo uma mulher com os filhos sendo espancada pelo próprio marido; vejo um profissional da saúde negando socorro porque o sujeito não tem dinheiro para pagar; vejo um soldado aceitando suborno e vejo um jovem sendo aliciado pelos traficantes. Com tristeza vejo o mal superando o bem.
Neste mesmo momento se olho para um lado vejo o bem superando do mal e se olho para o outro lado vejo o mal superando o bem. Vejo o conflito cósmico na vida real.
Jesus disse: neste mundo tereis aflições (Jo 16: 33).  Do que Ele estava falando? De perseguição contra os cristãos? Talvez inclua isso, mas para mim é muito mais. Ou para você uma mulher grávida ser espancada pelo próprio marido não é aflição? Será que o homem que chega em casa, mais uma vez desempregado, depois de três meses procurando emprego, não é aflição? Será que ver a sua casa arrombada e todas as suas economias se evadirem, não é aflição? Será que ver o filho com uma doença rara e sem recursos para dar a assistência que ele precisa não é aflição?  Será que ver um filho sendo engolido pelo mundo das drogas não é aflição? Será que ser diferente em um ambiente preconceituoso não é aflição? Será que ter câncer não é aflição?
O que é aflição para você?
Temos a tendência de evitar pensar nessas coisas como se elas não existissem
Condenamos os noticiários sangrentos porque escancaram o mundo diante de nós. Expõem diante de nós todas as nossas mazelas. Preferimos os jornais sem rosto, aqueles que não dão opinião e, por isso, não nos afligem. Preferimos os jornais que falam de coisas bonitas para não precisarmos nos indignar com as injustiças. Queremos evitar que nossos filhos ouçam sobre as mazelas. Preferimos que sejam como avestruzes que escondem a cabeça.
Claro que não estamos defendendo que se gaste todo tempo ouvindo e falando sobre mazelas. É preciso ter equilíbrio, mas não podemos fugir da realidade. Temos que assumir que vivemos em um mundo de contradições, que nossos filhos enfrentarão esse mundo, que temos que assumir a nossa posição política (de envolvimento ou não envolvimento) nesse mundo.
Não dá para fugir, não dá para fingir não ver, não dá para continuar tentando tapar o “sol com a peneira”.

Antonio Sales                                       profesales@hotmail.com
Campo Grande, 14 de setembro de 2013.