Uma leitura superficial ou tendenciosa do livro de
Tiago pode nos dar a impressão de que ele contradiz o apóstolo Paulo no que diz
respeito à justificação. Para Paulo a justiça vem pela fé e para Tiago ela é
produto das obras.
Conjecturei no texto anterior que eles tratam de
justiças diferentes. Neste texto pretendo aprofundar um pouco essa questão.
Paulo, no meu entender, estava discutindo com os
romanos (Rm 1:16,17) e gálatas (Gl 2: 20) a questão da salvação, de como o ser
o ser humano é aceito por Deus e passa a ser dirigido por Ele. A justiça de que
ele fala é a justiça imputada pelos méritos de Cristo que nos torna aptos para
integrar a família de Deus. A justiça que nos qualifica para uma relação com
Deus. Essa justiça independe da nossa ação. Ela nos é atribuída pela aceitação
da morte substituinte de Cristo. Enfim, ele fala de uma relação espiritual.
Tiago está tratando da religião prática, da
religião que é vivida no cotidiano. Ele
afirma que a religião sem mácula é aquela que nos põe em contato direto com o ser
humano, com as suas necessidades, suas incertezas, suas limitações (Tg 1:27).
As relações humanas são norteadas por leis e um ser
justo é aquele que respeita essas leis, que não explora o próximo, não difama e
não trai a sua confiança conforme disse o salmista (Sl 15). Nesse aspecto é
correto afirmar que justiça decorre da obediência à lei, do viver correto, do
agir conforme as normas da moral.
Temos a tendência de espiritualizar qualquer leitura
da Bíblia, como se a vida cristã tivesse uma única dimensão. No entanto,
cada um desses escritores neotestamentários focaliza uma
dimensão conforme a problemática que a igreja, objeto de sua carta, estivesse
enfrentando. Não creio que Tiago tenha pensado em nós do século XXI ou que
tenha escrito a esmo. Embora ele não cite textualmente uma igreja é muito
provável que tivesse uma delas em mente. A sua advertência aos ricos (Tg 5)
mostra que ele tinha um foco, um público específico.
É interessante observar que embora tenham focos diferentes
tanto um quanto o outro apela para experiência de Abraão.
Quanto a isso Tiago diz:
“Porventura o nosso pai Abraão não foi justificado
pelas obras, quando ofereceu sobre o altar o seu filho Isaac?
Bem vês
que a fé cooperou com as suas obras, e que, pelas obras, a fé foi aperfeiçoada.
E
cumpriu-se a Escritura, que diz: E creu Abraão em Deus, e foi-lhe isso imputado
como justiça, e foi chamado o amigo de Deus”(Tg 2: 21-23).
Paulo, por sua vez, afirma:
“Que diremos, pois, ter alcançado Abraão, nosso pai,
segundo a carne? Porque, se Abraão foi justificado pelas obras, tem de
que se gloriar, mas não diante de Deus.
Pois, que
diz a Escritura? Creu Abraão em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça.
Ora,
àquele que faz qualquer obra, não lhe é imputado o galardão segundo a graça,
mas segundo a dívida. Mas, àquele que não pratica, mas crê naquele que
justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça”(Rm
4: 1-5).
Considerando o que escrevemos sobre a experiência de
Abraão (http://www.debateologicosales.blogspot.com.br/2012/10/a-fe-de-abraao.html)
penso que podemos fazer a seguinte paráfrase desses dois apóstolos:
Tiago:
Abraão provou aos homens a sua justiça quando mostrou a sua disposição de
sacrificar o seu filho a Deus conforme o costume da época. Ao caminhar com o
filho para o Monte Moriá (Gn 22) ele revelou (ou confirmou) aos homens a sua
crença em Deus e, em virtude desse ato, foi reconhecido como justo e amigo de
Deus.
Paulo:
A justiça de Abraão, perante Deus, se deu quando, suspendendo o sacrifício de
seu filho, aceitou o substituto divino. Se fosse justificado ou considerado,
por Deus, como amigo pela disposição em oferecer Isaque a sua justiça não teria
sido pela graça. Ele teria “comprado” a justiça, isto é, colocado a Deus na
posição de quem favorece os que Lhe bajulam. Essa ideia contraria o exposto por
Jesus (Mt 5:45,46).
Dessa forma estamos entendendo que, na perspectiva de Tiago,
Abraão foi considerado justo pelos homens quando se dispôs a oferecer Isaque a
Deus e, na perspectiva de Paulo, ele foi considerado justo por Deus quando
aceitou a anunciação da morte substituinte de Cristo prefigurada pelo cordeiro
que foi disponibilizado para morrer no altar.
Estamos entendemos também que Abraão subiu o monte
como uma espécie de justo (a justiça social, aquela que se manifesta perante os
homens) e desceu como outra espécie de justo (a justiça espiritual, a justiça
conferida por Deus pela aceitação do cordeiro).
Campo Grande, 25 de outubro de 2012.
Antonio Sales profesales@hotmail.com
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