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sábado, 1 de março de 2014

À SOMBRA DO JUÍZO



Encontramos em várias passagens bíblicas o anúncio de que haverá um juízo final, um julgamento seguido de uma sentença (Mt 12:41; Ap 19:2; 1Pe 4:17; Ap 20:11-15; Mt 25:33). Mesmo deixando de lado a perspectiva bíblica parece não haver dúvida de que em qualquer sociedade há sempre um tribunal e que vivemos protegidos ou acuados por ele. Estou pensando  em juízo do ponto de vista de um réu, daquele que  tem contas a prestar.
Diante dessa expectativa podemos dizer que vivemos à sombra do juízo. No entanto, essa sombra pode ser vista sob  várias perspectivas. Uma delas é a da moral.
Nessa perspectiva temos três classes de pessoas: as heterônomas, as autônomas e as "anômalas". O heterônomo é aquele sujeito que age coagido.  Pode viver honestamente ou cumprindo os seus deveres por temer um encontro com o juiz, um encontro no tribunal. O heterônomo vive assim. Age de forma correta por temor, por coação. Cumpre os seus deveres por temor das consequências, por temer a sentença que paira sobre a sua cabeça. Para o heterônomo o juízo projeta um assombre sinistra, ele vive no lado escuro da sombra.
O sujeito moralmente autônomo não teme o juízo. Ele age motivado por uma ordem moral interior. Para esse sujeito o juízo projeta uma sombra clara, iluminada, protetora. Vive como se  não houvesse contas a prestar e, pela mesma  razão, como se o juízo não existisse. Ele é o seu juiz e o encontro no tribunal representa um momento de glória, uma oportunidade de vindicação (defender a sua pureza), a oportunidade de receber o galardão (ser honrado, receber a glória que lhe é devida).
Por outro lado, o sujeito moralmente "anômalo", que vive em estado anomia, leva uma vida de indiferença, simplesmente ignorando que terá contas a prestar ou que deve satisfação à sociedade. Vive como se não existissem lei, sociedade, ordem; como se não existisse o amanhã. Vive para si e para o aqui e o agora. Uns ignoram e outros  desdenham do juízo.
Outra perspectiva é a da fuga do enfrentamento. Deixa-se de tomar posição contra atos de injustiça sob o pretexto de que no final o tribunal (divino ou humano) fará justiça. É uma forma cômoda de viver. O sujeito não reclama os seus direitos, não defende os fracos, não se opõe contras as injustiças supondo que o tribunal tenha olhos, que o juiz seja onipresente e que se posicionará espontaneamente a seu favor.
Mesmo em se tratando de juízo divino onde o Juiz, supostamente,  tudo vê e tudo observa atentamente, não é correto esperar sem reclamar porque a justiça não socorre os que dormem, não pode defender quem não manifestou o desejo de ser defendido salvo se o sujeito for considerado incapaz.
A história traz exemplos dessa postura dos tribunais (divino ou humanos) quando ditadores tiranos permanecem no poder até que o povo se manifesta e reclama por justiça. Esse reclamar normalmente é ativo, é manifestado pelas ações do povo que sai às ruas, que se expõe e que exige renúncia do tirano ou a sua condenação.
Até mesmo Deus tem agido assim permitindo que injustiças sejam cometidas por décadas contra um povo que ora e clama por Ele, mas não age. O clamor passivo tem produzido pouco ou nenhum resultado e mesmo que no final, no ajuste de contas universal, o tirano seja condenado não haverá como repor os prejuízos causados ou recompor as vidas destruídas e famílias desfeitas.
Essa perspectiva de espera passiva é a perspectiva da fuga da responsabilidade pessoal.
Tenho observado que muitos cristãos vivem à sombra do juízo divino nessa perspectiva de fuga. São cristãos lamurientos, moralmente fracos e espiritualmente ignorantes. São heterônomos morais e contraditórios porque  ao mesmo tempo em que agem corretamente por medo do juízo, vivendo na sombra sinistra, projetam nela as suas esperanças. Uma situação claramente paradoxal.
 Muitas igrejas têm conseguido manter os seus fiéis nessa perspectiva por anos, às vezes, por toda uma vida.
Antonio Sales
Campo Grande, 01 de março de 2014.

2 comentários:

  1. Acho que me enquadro no grupo lamuriento "espiritualmente ignorante".

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  2. É possível mudar de lugar, amigo leitor. Não permaneça assim, é muito triste.

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