Hoje nos deteremos na análise do discurso de Jesus sobre os olhos conforme registrado em Mt 6:22-24.
“A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz; Se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão grandes serão tais trevas! Ninguém pode servir a dois senhores; porque, ou há-de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamon.”
O texto bíblico é resumido. Não conhecemos todos os pormenores e nem mesmo o contexto em que muitas frases foram pronunciadas. Parece até mesmo haver um truncamento, uma ausência de sentido na passagem do versículo 23 para o versículo 24.
Temos que imaginar esse contexto levando em conta o que se passava na época, os discursos dos fariseus e as respostas dadas por Jesus. Temos que considerar também o cronista, qual o foco de quem fez o relato. Hoje não vamos nos deter no contexto, vamos isolar o relato do evangelista e considerá-lo em um contexto atual.
Jesus começou dizendo que os olhos são luz ou trevas do corpo, ou melhor, da vida.
É claro que os cinco sentidos são as janelas por onde entram as informações que contribuem para formar as sinapses e compor o nosso cérebro. E cérebro aqui não é a massa cefálica, mas o conjunto de informações que ela contém. São as relações que estabelecemos entre essas informações e a partir dessas informações.
A partir das informações físicas tais como o som, a luz, as cores, as sensações de quente ou frio, o perfume ou o seu oposto, o azedo, o doce, o salgado e outras informações, o cérebro se prepara para constituir a nossa personalidade com relação aos aspectos físicos da vida.
Essa constituição também afeta a nossa vida relacional. Por exemplo: uma pessoa gosta de um perfume que irrita a outra pessoa. Um cônjuge gosta de comer alguma coisa que o outro detesta. Há pessoas que têm critérios para se vestir com elegância enquanto outras não se dão conta disso e, às vezes, acabam andando de modo não convencional e servindo de gracejos para os outros. Se essa pessoa é o seu cônjuge isso deve lhe incomodar também.
Tudo isso é produto das informações que chegaram ao cérebro através das mães, dos pais, dos amigos e do convívio social. Enfim, através dos sentidos.
Pensando na nossa constituição intelectual suponho que sejam os ouvidos e os olhos que mais influência exerce em nossa personalidade. Em um primeiro momento eles trazem informações que constituem o nosso cérebro, que produzem as sinapses e fornecem elementos que comporão nosso arcabouço intelectual. Depois eles passam a serem as fontes de informações e, ao mesmo tempo, passam a ser dirigidos por nosso cérebro. São levados a olhar e a ouvir o que interessa ao cérebro. Tornam-se escravos do cérebro, comandados por ele. Olham na direção que o cérebro quer que olhem, apreciam o que o cérebro apreciem e ouvir o que o cérebro quer que ouçam. Valorizar somente o que o cérebro valoriza.
Não esqueçamos que cérebro aqui não é massa cefálica, é o conjunto de informações, é o produto da nossa educação formal ou informal. Cérebro em nosso texto de hoje é um produto social.
Por isso Jesus disse que os olhos são luz ou trevas da vida. Eles refletem a educação que nosso cérebro recebeu e as informações que foram guardadas como importantes. Nesse sentido os olhos são reflexos do caráter da pessoa.
Eles veem o que o cérebro considera importante. Eles focalizam o que a pessoa está acostumada a focalizar. Eles buscam o que a vontade determina, mas a vontade foi educada nesse contexto de informações trazidas por eles mesmos para o cérebro.
Há um movimento constante de ir e vir de informações através dos olhos. Essas informações são filtradas e valoradas pelo cérebro com base no substrato de informações que já possui e sinapses sociais que construiu.
Os olhos (os órgãos dos sentidos em geral) não distinguem o que o cérebro não consegue distinguir (luz e trevas podem ser iguais para os olhos, se estiverem desconectados do cérebro), feio ou bonito é uma questão de educação ou de preferência.
Um matemático se encanta com a simetria, com as regularidades, com os acordes harmoniosos, com as formas padronizadas e com os compassos cronometrados. Uma pessoa com outra formação pode se encantar com o assimétrico, se deleitar com o irregular, preferir a dissonância, romper com os padrões artísticos, morais, etc. ou aderir ao tempo de kairós.
Quem se tornou evangélico há 35 anos ou mais acostumou-se a ver as irmãs com cabelos compridos, ouvir sermões acusatórios ou centrados em doutrinas, cantar e ouvir hinos clássicos e com forte entonação sobre a volta de Jesus, falar sobre os sinais dos tempos e sobre a ordem para cumprir a missão. Seu cérebro foi habituado a isso, está constituído assim.
Se viveu na zona rural o seu cérebro se habituou ao monótono trinar de alguns pássaros e ao melodioso, mas pouco variado, trinar de outros; ao farfalhar das folhas sopradas pelo vento, ao murmúrio da cachoeira e o cantar do galo “repicando” na madrugada. Uma pessoa como essa não aprecia as músicas de hoje e a falta de rima na poesia lhe incomoda. A falta de conteúdo escriturístico nessas músicas lhes provoca desconforto. O ritmo com que são apresentadas soa-lhes blasfemo, vazio de significado.
Por outro lado para os nossos jovens, criados em outro ambiente, acostumados aos constantes acelerar e desacelerar de carros e motos, ao som sempre presente e volumoso da TV, dos toca-CDs e à ausência de uma leitura sistemática da Bíblia, a monotonia está nos hinos clássicos, nos sermões à moda antiga e nos temas centrados em uma doutrina.
Por isso Jesus disse que os olhos são luz da vida e bons olhos significa que a vida é o resultado de um cérebro que foi moldado pelos bons costumes, reformulado por uma vida repleta de superação das mágoas, superação dos fracassos pessoais e dos dramas familiares e sociais. Os olhos guiados por um cérebro orientado por uma religião coerente, pela prática da cidadania e influenciado pelo Espírito Santo são a luz da vida. Um cérebro devidamente esclarecido, que venceu os preconceitos, que sabe lidar com os dramas pessoais e familiares produz bons olhos. Um cérebro que sabe distinguir o tempo em que vive ilumina a vida. Há quem olha o presente com olhos do passado (os saudosistas) e há quem olha o passado com os olhos do presente (percebem as mudanças e tiram proveito delas).
Por essa razão pode-se dizer que:
Olhos bons procuram as virtudes dos semelhantes e as possibilidades de converter algum defeito em virtude.
Um bom educador procura detectar a ignorância do aluno para ajudá-lo a superá-la. Um mau educador procura ver as dificuldades dos alunos, do sistema em geral, para justificar a sua falta de sucesso como educador.
Olhos bons procuram oportunidades de servir (orar, trabalhar, colaborar, elogiar, educar, apontar sugestões, engajar-se).
Olhos bons procuram realçar aspectos positivos como forma de superar os aspectos negativos. Procuram compreender as causas dos insucessos, o porquê das diferenças, o motivo das ações praticadas, as intenções de quem faz e as dificuldades pessoais de quem coordena ou executa.
Olhos bons procuram ver além do presente (Mt 6.19). Ver além do que viu, ver a intenção de acerto através do erro, ver a busca da fé através da dúvida, ver o clamor por socorro que pode estar oculto em cada manifestação de aparente rebeldia. Bom solhos veem na aparente indiferença algo mais do que falta de vontade ou de disposição. Sabem que ali pode estar presente um relato de dor, a marca de uma frustração ou a falta de esperança. Que talvez seja a manifestação de um pedido de socorro ou o aviso de que se espera algo diferente.
Olhos bons veem na oferta da viúva pobre (Mt 12:42), naquele pouco que foi feito, uma demonstração de vontade de fazer mais. Olhos bons leem para aprender, descobrir coisas novas. Leem para atualizar e enriquecer o cérebro. Leem para compreender o drama dos outros e os gritos de socorro nem sempre expressos na linguagem comum.
Se os olhos forem bons, disse Jesus, quanta luz, quanta contribuição, quanta tolerância, quanta orientação disponível. Se os olhos forem bons, isto é, se o cérebro foi reformulado através de uma leitura saudável, da busca de mais esclarecimentos, da atuação do Espírito Santo, de reuniões de estudo e da participação aos cultos bem conduzidos, quanta bênção.
Por outro lado Jesus disse que os olhos podem ser as trevas da vida.
Olhos maus são os olhos do preconceituoso porque não conseguem olhar sem focalizar os defeitos. Não conseguem olhar sem ver maldade no que se apresenta, não conseguem olhar sem ver más intenções nos gestos.
Olhos maus são os olhos do invejoso porque não vibram com a vitória do outro.
Olhos maus são os olhos do ignorante porque não admite a necessidade de mudança em si mesmo, sempre é o ouro que tem que mudar.
Olhos maus veem oportunidade de explorar o outro.
Olhos maus veem oportunidade de autopromoção.
Olhos maus leem para aplicar ao outro.
Olhos maus leem para confirmar o que pensam.
Conclusão
Na conclusão Jesus fala “bruscamente” de dois senhores. É impossível ter olhos bons e olhos maus ao mesmo tempo. O que é possível é ser prudente e partir do pressuposto de que tudo merece uma análise antes de ser denunciado. O que é possível é ouvir antes de punir, é dialogar antes de legislar, é tentar acarear antes de odiar ou punir.
É impossível ser bom e mau ao mesmo tempo, mas é possível perceber que as pessoas não são obrigadas a concordar conosco, nem fazer o que nós queremos que façam a menos que sejam crianças ou nossas empregadas.
Campo Grande, 27/12/2008
Antonio Sales profesales@hotmail.com