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quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Inversão de Valores


Não é raro ouvir alguém dizer que vivemos em uma sociedade cujos valores estão na ordem inversa. Alguns fundamentalistas religiosos procuram intimidar os jovens para que não estabeleçam relações com pessoas que não sejam da mesma fé por entenderem que  tais pessoas vivem sob a influência dessa sociedade de valores invertidos.
Sempre tive dificuldades em identificar o que há de errado com a sociedade, ou com esses discursos, em relação aos valores.  Se for verdade que presenciamos uma inversão de valores então é de se supor que em algum tempo no passado esses valores estiveram ordenados e forma correta. Quando ocorreu isso? Em que ordem estavam os valores quando estavam corretamente ordenados? Em que a inversão atual é prejudicial?
Que  algumas pessoas tenham os seus valores pessoais invertidos em relação ao contexto social onde vive parece ser fácil de observar. É para evitar que essa distorção se alastre que existe a educação. A igreja também deveria contribuir com a educação para que tivéssemos menos pessoas vivendo na contramão dos valores sociais vigentes.
Dizer que a sociedade como um todo está com os seus valores invertidos é uma expressão dúbia, nebulosa, porque não se diz em relação a que, ou em relação a qual época, se faz a afirmação.
Tudo que não tem uma referência não permite uma avaliação. Se não é apresentada uma referência como saber se o discurso está correto ou não?
Da minha parte, fico tentando adivinhar o que querem dizer com isso. Procurei pensar como seria a ordem correta dos valores e para isso percorri meus fragmentos de  história. Como não sou acadêmico da área de história ou de sociologia não possuo texto completo ou algum autor de referência. Tenho que trabalhar com os fragmentos que minha precária cultura escolar me proporcionou.
Mesmo com essa deficiência intelectual, e bibliográfica, penso que é possível tecer algumas considerações sobre um assunto tão importante. Não discutirei o que é valor e como ele se constrói. Vou direto ao ponto: o discurso  da inversão.
1. Desde que se tem notícia, ou o que os meus fragmentos históricos me contam, os homens (gênero masculino) sempre ocuparam posição de destaque em relação à mulher. Ele dava ordens, podia repudiá-la e podia “educá-la”, isto é, domesticá-la à chicotadas. Na família ele era o chefe e ela era a subalterna. Ele o livre e ela, a dependente. Talvez encontremos algumas exceções ao longo do tempo, mas são “pontos fora da curva”. A regra era: o homem mandava e mulher que tinha juízo obedecia. Penso que essa era a ordem “correta” no relacionamento entre homem e mulher. Era a ordem historicamente construída a partir dos primeiros seres humanos.
A superioridade do homem era um valor inquestionável, um bem inestimável. Algo que o homem não queria e nem poderia perder.
Em algum ponto da linha do tempo, porém, alguma coisa começou a mudar e hoje ela fala de “igual para igual” com ele, tem identidade própria, administra empresas e já chegou à presidência de alguns países.
Ora, se a ordem “correta” dos valores é o homem mandar e a mulher obedecer então tem uma inversão aí, não tem? Hoje ela manda e milhões de homens obedecem.
2. Naqueles tempos de valores ordenados “corretamente” a criança não era objeto de preocupação. Se fosse um filho homem, ainda trazia um pouco de esperança e alegria para os pais. Se fosse “ela” restava a expectativa de arrumar um bom casamento, com alguém que pagasse um dote.
Escola, para que? Criança tinha era que trabalhar para pagar o seu alimento e ajudar a pagar o alimento dos irmãos menores.  Direitos? Ela (a criança) tinha sim o direito de apanhar em silêncio ainda que fosse espancada por simples capricho do pai.
A ordem “correta” da relação era a hierarquia: homem, mulher, filhos.
Tem algo diferente hoje. Criança tem direitos, ela estuda e tem que ser tratada com respeito. Será essa uma das inversões tão questionadas?
3. Os reis, príncipes, nobres e senhores feudais podiam tudo. O povo não podia nada. Eles tinham servos, cavaleiros de honra, ditavam as regras e tinham direito à lealdade dos seus súditos. Ao povo cabia ter que se contentar em cumprir ordens, dever favores, aceitar humilhações, enfim, viver de favores. Hoje o povo faz greve, recorre à justiça, requer salário digno e atenção básica de saúde, pede segurança e escola para os filhos. Talvez essa inversão de valores esteja incomodando. Talvez achem estranho que os “nobres” devam favores ao povo.
4. O que se passava nos arredores do palácio era sigilo. Somente os mais chegados sabiam da humilhação que as mulheres passavam no harém. Os nobres (não) se enriqueciam ilicitamente. Eles (não) praticavam a corrupção. Ninguém ouvia falar da exploração sexual de meninas. Uma ou outra mulher “fofoqueira” deixava escapar alguma coisa, transmitindo o seu grito sufocado de socorro para ouvidos que não ouviam. Hoje a imprensa escancarou as portas do palácio, denuncia a corrupção e expõe perante o público as mazelas da “nobreza”.  Será isso uma inversão de valores?
5. Os reis herdavam o trono por determinação divina. Eles eram os filhos dos deuses e a voz deles era a voz de deus. Hoje, no regime democrático, a “voz do povo é  a voz de deus”. A seta indicadora de direção está invertida, não está? Agora  a ordem é outra, não é mais aquela ordem “correta”.
6. Os reis eram os mandatários supremos. Destituíam a quem eles queriam, sufocavam rebeliões, massacravam multidões. O trono era inatingível pelo povo. Hoje, os “caras pintadas” saem às ruas e forçam o impeachement de um presidente. Isso está na ordem “correta”?.
7. No passado os pais eram os sábios da família. Eles conheciam o mercado, faziam negócios, iam à cidade, etc. Portanto, os únicos bem informados e os donos da verdade em casa. Atualmente os filhos estudam e questionam a sabedoria dos pais. Deve incomodar um pouco essa inversão.
8. Os pais (os homens) faziam o que queriam e eram inquestionáveis. Vemos na atualidade filhos pequenos questionando os pais quando ultrapassam o sinal vermelho ou não usam o cinto de segurança.
Quando ingressei na carreira do magistério logo me vi envolto em debates sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e sobre  a proteção de animais. Estranhei profundamente tudo isso. Parecia que o caos estava se instalando. Estavam brigando por direito dos animais e por direitos dos alunos, mas,  e os direitos da gente onde ficavam. Gente para mim eram o professor e os pais. Aluno não era gente, criança não era gente. Proteger animal não era coisa de gente. Eu não entendia que a proteção dos animais vai além da discussão ecológica, no seu aspecto físico, tem muito a ver com a ecologia social. Quem acaricia um cão dificilmente chuta uma criança. Que protege um animal terá mais facilidade para cuidar do seu próximo. Uma sociedade que protege os indefesos animais, por certo, protegerá os seres humanos também.
Espera-se que uma criança protegida da violência seja uma defensora da paz. Crescerá sem ódio, sem desejo de vingança e, supostamente, defendendo as outras crianças.
Os valores estavam, de fato, se invertendo naquela época e apanharam-me de surpresa. Os seres humanos estavam sendo violentados nas favelas cariocas e as ONGs defendendo os animais? Tudo parecia confuso, mas hoje está claro que sempre se começa por algum lugar. Hoje eu sei que algo tem que ser feito para quebrar a rotina, mudar a ordem vigente para iniciar um novo caminhar. Eles quebraram a ordem e agora a diferença já pode ser vista.
Talvez o leitor consiga se lembrar de outros casos de inversão de valores que possam estar incomodando e provocando esses discursos nebulosos e também possa estar se lembrando de alguma experiência sua em que foi preciso quebrar a ordem vigente para mudar o rumo da história.
É evidente que existem dezenas de outros fatores e inúmeras inversões que parecem não ter surtido os feitos esperados. Hoje, por exemplo, somos muito mais estressados. Bem, isso é o que dizem. Tenho cá minhas dúvidas. Será que o homem, chefe de família, que servia a um feudo não tinha estresse? Será que a vida sem perspectiva e a provável investida do senhor “contra” a sua esposa, enquanto ele trabalhava, não lhe dava estresse? Talvez não porque sem conhecimento não há conflitos íntimos (ver artigo sobre conhecimento e certeza), a ignorância anestesia, mas era isso que queríamos para nós? Será que não preferimos o estresse?
Bem, o certo é que não havia “volantes assassinos”, “cruzamentos perigosos”, bêbados no volante, etc., mas será que o que existia não era pior? A “peixeira”, a espingarda e as tão comuns vinganças familiares que dizimavam famílias seriam algo melhor do que os acidentes de hoje?
O certo é que não estamos bem. Muito há ainda para melhorar, mas, o leitor acha mesmo que estamos piores? Todas as inversões foram para pior?
Eu não gostaria que minha filha e minhas irmãs tivessem vivido naqueles tempos tão saudosos para muitos.Prefiro vê-las neste tempo de valores invertidos.
Antonio Sales
profesales@hotmail.com
Nova Andradina 10 de julho de 2011

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