Quando escrevi o primeiro texto sobre esse tema enfatizei que usamos espiritualizar demais a vida. Essa ênfase incomodou alguns leitores que se posicionaram delicada, mas firmemente, sobre o assunto.
É muito gratificante ter a participação dos leitores ainda que eles discordem do que foi escrito. Um escritor vive de desafios, da necessidade de esclarecer algo ou até mesmo de provar o que disse. Preciso de desafios para continuar escrevendo e os leitores, tanto os que se manifestam concordando como os inconformados com o que leem, são a mola propulsora do meu trabalho.
Vou tecer algumas considerações sobre o que esses leitores escreveram colocando entre aspas a fala deles.
“Como não espiritualizar tudo se acreditamos que tudo que exista é obra de um ser Supremo e Divino?”, perguntou um deles. A pergunta é pertinente e de difícil resposta. Vou tentar tangenciá-la dizendo que Deus não espiritualiza tudo. Ele sabe que muitos problemas têm que ser atacados no seu próprio “terreno”, na dimensão a qual pertencem. Para atacar o problema do pecado e dar esperança ao homem Ele se fez carne a habitou entre nós (Jo 1: 14). Para tirar o povo do Egito Ele usou Moisés e para dar a lei Ele usou pedra e escreveu na língua do povo. Parece-me que para problemas humanos Ele tem usado soluções humanas ou por meio de humanos.
Temos que assumir que a nossa vida não é somente espiritual. Ela é terrena também e é na dimensão terrena que enfrentamos a maior parte dos problemas: drogas, negócios mal feitos, relacionamentos quebrados, sedução, acidentes, violência, desempregos e tantos outros.
“A oração nos aponta caminhos, nos guia, nos fortalece” sentencia outro. Não posso questionar a verdade dessa afirmação. Também creio nesse potencial da oração, porém, na dimensão material da vida, que é onde eu vivo e onde encontro os problemas a serem solucionados, penso que ela realmente “aponta o caminho”, mas não o transforma em uma esteira rolante. Em outras palavras: nesta vida, o caminhar é tarefa minha. A oração não substitui o médico, o mecânico, o ato de estudar, semear e colher. Ela orienta o médico, mas não o habilita a ser médico. Ela acrescenta habilidades ao professor, mas não lhe confere o diploma. Portanto, depender unicamente da oração parece-me uma impossibilidade nesta vida terrena.
Não podemos negar que temos a dimensão espiritual- campo onde a oração nos aproxima de Deus, alimenta a fé e a esperança. Minha preocupação é com o excesso de espiritualização da parte material da vida.
“Qual seria a "quantidade" de espiritualidade que precisamos para viver, levando em conta todos os problemas da vida, tais como: câncer, fracassos, limitações humanas, tristezas, desastres e acidentes, entre outros problemas que não estão no nosso domínio humano?” questiona um terceiro. Pergunta importante. Também vou tangenciar porque não sei enfrentá-la diretamente. Pergunto: Será que a espiritualidade nos livrará desses problemas?
Paulo, o apóstolo, disse que não. Ele nos mostrou que mesmo as pessoas profundamente espirituais, que mantém um bom relacionamento com Cristo, têm “espinho na carne” (2Co 12:7). O próprio Cristo que orava noites inteiras não ficou livre dos ataques dos escribas e fariseus que O sondavam frequentemente.
A ciência resolve alguns problemas, cria outros e alivia a tensão proveniente de outros. A oração pode curar, pode mascarar o problema ou pode não fazer nenhuma dessas coisas. Viver é complexo, meu amigo.
“Ou a Oração pode influenciar em todos os fatores que determinam a minha ação diária?” continua o mesmo leitor. Creio que a minha oração pode influenciar a mim, mas pode não influenciar o outro do qual dependo para resolver alguns problemas. A oração não é algo mágico que retira de mim alguma energia e a transfere diretamente ao outro provocando-lhe “espasmos” que o despertarão para atender a minha necessidade. Oro a Deus e Ele tentará influenciar o outro, podendo conseguir sucesso ou não. O outro tem o livre-arbítrio que lhe confere o direito de aceitar ou recusar a atuação divina na sua vida.
A oração, como se vê, tem seus limites. Ainda bem que é assim. Se a oração resolvesse tudo muita gente bem intencionada, mas mal informada, nos faria muito mal através da oração.
“Até que ponto podemos reduzir a importância da espiritualidade?” pergunta ainda o terceiro leitor. Penso que não podemos pensar em reduzir a importância de nada. Nem da espiritualidade e nem da nossa materialidade. Não somos seres unidimensionais. Temos a dimensão espiritual e devemos cultivá-la. Temos a dimensão física e devemos cuidar dela. Temos a dimensão social e devemos aprender a lidar com ela. Temos a dimensão intelectual e devemos investir nela.
Podemos “comparar [a espiritualidade] com fatos empíricos da vida sem levar em conta os "padrões" internos da palavra de Deus (ou do Cristianismo: Fé, milagres, curas, graça, salvação, arrependimento, etc)?” e a questão levantada por um quarto leitor. Resposta: não.
Não podemos desvalorizar nada, reduzir nada e não podemos comparar “objetos” de naturezas diferentes. Não podemos reduzir uma coisa à outra. Temos que aprender a por cada coisa em seu lugar. Assim como o dinheiro não substitui o amor, porque são de naturezas diferentes, isto é, pertencem a dimensões diferentes do ser humano, também a espiritualidade não pode substituir as lutas do dia-a-dia e vice-versa.
A minha proposta é que deixemos para o espiritual as questões relativas á salvação: apropriação da graça, aceitação do perdão, crescimento na fé e na esperança, relacionamento com Deus e outros fatores relacionados. Que enfrentemos como seres humanos, cidadãos desta terra, as questões relacionadas a esta vida presente: ética, moral, trabalho, educação, doença, violência, estudo e por ai a fora.
Devemos deixar com “César” o que é de “César” realizar e com Deus o que só Deus pode fazer (Mt 22:21).
O que tenho percebido é que temos, literalmente, fugido do enfrentamento dos conflitos diários e deixado que eles permaneçam sem solução, com base numa suposta confiança em Deus e na oração. Se os cientistas tivessem procedido assim ainda hoje não teríamos a anestesia. As novas técnicas cirúrgicas, os remédios que salvam tantas vidas e aliviam tantos sofrimentos, os carros que facilitam a nossa locomoção e a energia elétrica cuja utilidade é inquestionável, apenas para citar alguns exemplos (a lista é interminável), ainda seriam coisas do futuro.
Percebo certa hipocrisia em nossa relação com a oração. Não vejo ninguém tentando substituir uma cirurgia por oração e nem o ato de subir uma ladeira por oração (orar para que ela se transforme em escada rolante, por exemplo), mas vejo muita gente querendo substituir o trabalho de um psicoterapeuta por oração, substituir o estudo por oração e assim por diante. O que me parece é que aquilo que não pode ser mascarado, a gente faz e o que pode ser mascarado a gente ora sobre ele. Ninguém mascara uma subida e ninguém ora para que ela desapareça. Ninguém mascara uma infecção, uma fratura exposta, ou a dor de um câncer. A ação sobre essas coisas não é substituída pela oração.
É possível mascarar (ou pensar que se pode mascarar) a falta de conhecimento, então se ora ao invés de se estudar. É possível mascarar uma depressão, um trauma emocional, um casamento em fase de deterioração, e tantas outras coisas. Sobre essas se ora e se procura substituir a ação de um profissional e o esforço humano, pela oração.
É sobre isso que quero alertar.
Antonio Sales profesales@hotmail.com