O texto que vamos analisar está registrado em Mt 27:19-24, 33-42; Jo 19:5,6, 17-21; Lc 23:35-43.
Mas antes vamos falar do contexto.
No tempo de Jesus, Roma era a capital do império que dominava boa parte do mundo. Na realidade o império romano dominava o que hoje denominamos Europa Ocidental e Oriente Médio. E não foi somente no tempo de Cristo, não. Esse domínio começou quase 170 anos antes de Cristo e se prolongou por mais de 450 anos depois de Cristo. Foi cera de 650 anos de domínio romano.
No tempo de Cristo, a região onde Ele nasceu, estava sob o domínio do Império Romano. O Império colocava soldados em cada lugar que dominava, nomeava os cobradores de impostos e fazia o patrulhamento policial da região. Ele instalava guarnições militares para manter a chamada Paz Romana.
A Paz Romana não era paz para os povos dominados, porque os soldados não eram delicados, corteses com a população. Eles dominavam com espada e lança na mão, não respeitavam ninguém. Essa paz era paz para o império porque ninguém se atrevia a falar contra o imperador, a desrespeitar as suas ordens. Ninguém podia falar nada contra as autoridades. O povo andava com medo e de cabeça baixa. Não pensem que era seguro uma mulher ou uma moça sair sozinha pelas ruas, embora os soldados estivessem por toda parte.
Aquela soldadesca fazia com as mulheres o que os soldados da força de paz estão fazendo hoje com as mulheres do Congo. Porque eu falo isso, e escrevo sobre isso alguns homens não ficam muito satisfeitos comigo e até já me disseram que eu ando exagerando. Dizem que as mulheres antigamente eram bem protegidas, felizes. A minha resposta é que eles falam isso porque não foram mulheres naquela época e pimenta no olho dos outros não arde. Imagino que daqui a alguns anos vai aparecer algum homem ingênuo dizendo que as congolesas dos nossos dias foram felizes e bem protegidas.
Isso, de alguma forma, é confortável porque a gente não precisa pedir desculpas pelos erros históricos que cometemos contra elas. Já que elas foram felizes e bem protegidas, nada têm a reclamar.
A Paz Romana não era paz para ninguém, exceto para o império.
E na região da Judéia onde Jesus nasceu a situação ainda era mais complicada. Os líderes judeus, em sua maioria, especialmente os fariseus, não aceitavam essa condição e estavam sempre sendo uma ameaça aos romanos. Ali os soldados pegavam firme para que nenhuma rebelião começasse. Os soldados faziam questão de mostrar o seu poder, procuravam vigiar cada grupo que parasse para conversar na rua. Por essa razão, nas falas de Jesus ao público, sempre havia soldados romanos de observadores.
Além das guarnições, o império nomeou também um governador para região chamado Herodes e um juiz, chamado Pilatos.
Já sabemos que Herodes era tetrarca da Galiléia, isto é, era a pessoa nomeada pelos romanos para administrar a região. Uma espécie de governador e que existiram vários Herodes, descendentes dele. Havia os centuriões que eram comandantes dos destacamentos policiais e atuavam como delegados também. Alguns se tornaram simpáticos ao judaísmo e até ao cristianismo, não todos. Havia também os publicanos que eram os agentes tributários, e um jurista, o procurador Pilatos, para fiscalizar o cumprimento das leis. Ele era um entendido em direito romano e acumulava as funções de promotor e juiz. Era essa a função de Pilatos.
Pilatos ficou na história porque teve a difícil tarefa de julgar o Rei dos reis, o Messias. De condenar à morte o salvador da humanidade.
Enquanto estava arguindo Jesus a sua mulher deu-lhe um recado: este homem é justo, disse ela. Não O condene. Não assuma essa responsabilidade. Pilatos também já havia percebido pelas arguições que o réu era inocente e que tudo aquilo não passava de uma trama dos judeus movidos pela inveja..
Alguém poderia dizer: mas se ele não tivesse condenado a Jesus então ele teria que soltá-Lo. Nesse caso, Jesus não teria morrido. Como ficaria a nossa situação?
A nossa situação ficaria do mesmo jeito que está agora porque Jesus teria morrido sim. É certo que os judeus não podiam condenar ninguém à morte, a lei romana não permitia isso. Mas isso não impedia que eles matassem a Jesus. Hoje, no Brasil, ninguém tem o direito de condenar ninguém à morte e, no entanto, as pessoas estão sendo mortas. É um tiro aqui, uma facada ali, um estrangulamento lá, o lançamento de alguém a partir sexto andar de um prédio no outro dia, um incêndio criminoso noutro lugar, uma martelada na cabeça dos pais que dormem, um bêbado no volante que provoca acidente e assim por diante. A lei não nos faculta o direito de condenar ninguém à morte, mas ela não impede que os matemos. E da forma mais esdrúxula, às vezes.
Nós matamos muita gente não condenada. Se entendermos a vida como algo mais do que o complexo metabólico que nos mantém em movimento, podemos dizer que nós matamos muita gente. Com o nosso comportamento, com as nossas crenças, com os nossos complexos, com o nosso despreparo nós matamos muita gente em outros aspectos mais sutis da vida.
Às vezes é o ciumento que tira as oportunidades de crescimento do outro, que lhe rouba o prazer de viver e o conduz ao tratamento psiquiátrico. Outras vezes é a nossa indiferença que aniquila o outro. Um psicanalista afirmou que o oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença, tão cruel é essa atitude. Às vezes são as palavras duras, desestimulantes, que destroem a vida social, emocional e espiritual de alguém. Por vezes são as chamadas “rasteiras”. As formas sutis como retiramos o apoio do outro e o deixamos no vazio emocional, no auge do seu projeto de vida. Daquele projeto que ele investiu todas as suas energias. Muitas vezes fazemos isso simplesmente movidos pela inveja.
Às vezes é a nossa a petulância, a nossa hipocrisia, a nossa falta de delicadeza, a falta de polidez que destrói o mundo emocional do outro deixando-o vazio, sem estímulo para continuar.
Nós matamos pessoas não condenadas pela justiça.
Se Jesus não tivesse sido condenado por Pilatos isso não O livraria da morte. Um golpe “perdido” de espada, uma revolta simulada, uma busca pelas montanhas enquanto Ele orava à noite facilmente o “confundiria” com o bandido. Sem dúvida haveria mil maneiras de matá-lO. Com certeza Ele estaria morto poucos dias depois de ter sido libertado por Pilatos. Seu sangue seria derramado de alguma maneira.
Então não foi porque teria que morrer que Ele foi condenado por Pilatos. Não havia nenhuma pressão profética pesando sobre a cabeça de Pilatos. Por outro lado, se Pilatos não viu Nele crime algum então por que O condenou?
Olhando do ponto de vista de Pilatos, podemos dizer que:
Pilatos O condenou porque não tinha compromisso com a justiça. Seu compromisso era com o cargo que ocupava, com o prestigio que este lhe dava.
Pilatos O condenou porque não tinha compromisso com a sua esposa ou com o povo. Seu compromisso era com o imperador, era com César, com aquele que lhe mantinha no poder.
Pilatos O condenou porque não tinha compromisso com os inocentes e com os fracos. Seu compromisso era com aqueles que o bajulavam, que o prestigiavam, que o haviam subornado algumas vezes, ou que podiam derrubá-lo do poder.
Pilatos O condenou porque não tinha compromisso com a verdade. Seu compromisso era com a sua consciência. Uma consciência maculada pela vida comprometida com os subornos recebidos, cauterizada pelas injustiças praticadas para beneficiar amigos.
Eram essas as razões que Pilatos encontrou para condenar a Jesus.
Alguns dizem que a vida de uma pessoa é norteada pela consciência. Penso diferente: é a consciência que é norteada pela vida Quando alguém diz que está agindo de acordo com a consciência não pensem que está produzindo algo necessariamente bom. Dependendo da sua vida pregressa, das desculpas que tem dado para os seus erros, das idéias que se habituou a defender, da forma como encara a vida e os outros, dos subornos que recebeu, das falcatruas que já fez, dos estupros que já praticou, o produto da sua consciência pode ser tão ruim quanto o produto do seu intestino.
Do ponto de vista de Pilatos, eu imagino que foram essas as razões para condenar a Jesus. Faltava-lhe compromisso com o bem, com qualquer prática que fosse ética.
Mas, olhando de um ponto de vista mais amplo, por que será que Pilatos O condenou?
Essa pergunta eu vou deixá-la sem resposta. Cabe o leitor conjeturar sobre ela.
Pilatos resolveu que Jesus seria morto e mandou escrever uma frase, que se tornou célebre, e mandou colocá-la no topo da cruz: “Este é Jesus, o rei dos judeus”.
Que motivos claros teria Pilatos para escrever aquela frase?
Vou deixar também essa pergunta sem resposta.
Por que a frase foi escrita em três línguas?
Essa é fácil de responder. Era época de festa e muitos estrangeiros visitavam Jerusalém nessa época e as três línguas mais faladas na região eram: Hebraico ( falado em Judéia e consequentemente em Jerusalém), Latim ( a língua oficial do Império, língua materna de Pilatos) e Grego (a língua dos sábios, dos filósofos).
Agora vou falar de Pilatos como pregador do evangelho.
Três homens foram colocados na cruz, naquele dia. Jesus estava na cruz do meio e, possivelmente, as cruzes estavam em semicírculo de modo que um podia ver o outro.
Um ladrão, olhou, viu aquele letreiro, leu a frase e pensou: é isso rei, usou o trono para fazer o que nós fazíamos às escondidas. Não é porque estavas no trono que eras melhor do que nós. Um rei ladrão é tão bandido quanto eu e merece morrer como eu morro. Fomos iguais em vida estamos iguais na morte. Empatamos, no caráter, companheiro.
Foi o ladrão que zombou de Jesus.
O outro ladrão não era judeu. Porque eu sei disso? Pela crença comum entre muitos povos antigos de que os reis tinham privilégios ao morrer. Eles eram imediatamente recebidos nas cortes celestiais, com honras, festas e palácios à sua disposição.
Por isso ele olhou o mesmo letreiro e disse: Senhor, já que Tu és rei, e os reis mortos têm privilégio, são recebidos primeiro do que os outros na glória, portanto, estás próximo a tomar posse do Teu reino.
O homem era gentio, mas ele disse: Lembra-Te de mim quando lá chegares. Faça por mim o que os homens não fizeram. Dê-me uma segunda oportunidade.
Se Jesus fosse como muitos de nós hoje, teria dito: não é nada disso que acontece. Vamos corrigir tudo o que você falou.
Mas Ele entendeu as intenções do coração e disse: Descanse em paz. Tranqüilize a tua alma. Tu serás lembrado por Mim e estarás Comigo no paraíso.
Bonito, não é verdade?
Aquela frase escrita por Pilatos era a sua pregação do evangelho. E um ladrão se converteu a partir desse evangelho. E Pilatos tinha consciência de que estava pregando o evangelho. Ou vocês pensam ao contrário?
Aqui há outra lição. Cada homem leu a frase do seu modo, de acordo com as perspectivas que tinha, com os preconceitos que nutria, com o conhecimento que possuía e até com o estado emocional do momento.
O povo zombou, os soldados zombaram, os sacerdotes zombaram, a partir daquela frase. Um homem se converteu, a partir da mesma frase. Ele entendeu outra coisa da mesma frase
Quando alguém cita uma passagem da Bíblia no sermão e diz que está fundamentando a sua mensagem na Bíblia, às vezes eu me pergunto: será? A Bíblia diz isso ou você entendeu isso?
A pregação de Pilatos foi curta. Diz apenas: Este é Jesus, o rei dos judeus (Mat. 27:30). E foi o suficiente para levar, pelo menos, um homem à conversão.
O que isso nos diz sobre o Deus a quem servimos?
Um Deus de oportunidades, que procura salvar os que O buscam e que usa para isso até mesmo frases escritas com outras intenções.
Vou repetir as perguntas que fiz
Além das aquelas razões, puramente humanas, que citamos, por que será que Pilatos condenou a Jesus?
Que motivos humanos teria Pilatos para escrever aquela frase?
O que isso nos diz sobre o Deus a quem servimos? (Lucas 3:8)
É oportuno ficarmos fazendo receitas de como ser salvo, como agradar a Deus, como receber o Espírito Santo, como se preparar para o derramamento efusivo do Espírito Santo?
Campo Grande, agosto de 2008.
Antonio Sales profesales@hotmail.com
Grande sacada essa do "Evangelho de Pilatos". Nunca tinha pensado nisso e nem lido algo a respeito. Uma leitura original da frase sarcástica coloca na cruz de Cristo. Parabens pela descoberta e aplicações muito oportunas.
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