Minha cultura religiosa foi constituída no contexto de uma comunidade legalista. A instituição dizia-se portadora da verdade, portanto, inquestionável, e enfatizava o legalismo em cada leitura proposta.
Não estou dizendo que sempre se falava da lei, estou dizendo que a ênfase era nos deveres, nas obrigações, nos procedimentos, na necessidade da ausência de erro. O culto era, ou deveria ser, excessivamente formal. Não se discutia o privilégio de ser cristão, mas o dever de um cristão. Éramos concitados a imitar a Cristo no serviço e na obediência, mas não na tolerância, autotolerância e na liberdade interior.
Não significa que não se falasse em felicidade, alegria e privilégio. Significa que o discurso era teórico e que não atingia a prática. O próprio orador que falava de felicidade não se revelava feliz. A cada privilégio enumerado correspondia um dever, para cada motivo de alegria havia uma advertência. Alegria, felicidade e esperança eram conceitos abstratos, não tangíveis.
Numa leitura bíblica a lei fluía naturalmente ainda que de forma não explícita. Era possível, em cada sermão, prever que a conclusão seria sobre o dever, sobre a vigência da lei, uma condenação do mundo ou mundanismo ou um apelo para que deixássemos a vida que levávamos como se todos nós estivéssemos sempre errados em nossa conduta.
Os discursos sobre a graça eram teóricos e sempre conduziam para a lei, para o dever, para as exigências, para a necessidade de um bom exemplo, para a prestação de contas.
Não haviam palavras de ânimo, de esperança (não se trata de um discurso sobre esperança) de incentivo. Em outras palavras: éramos sempre devedores, sempre necessitávamos cumprir certos requisitos, e isso para mim é legalismo. Como pessoas estávamos sempre do lado errado e tendo algo para ser corrigido.
A ênfase no dever é legalista. Todo excesso de exigência é legalista. A vigilância constante é legalismo.
Não sou favorável a um discurso centrado nos direitos. Penso que um discurso religioso deve ser equilibrado ou produtor de equilíbrio. A sua ênfase deve ser na cidadania que significa ter direitos e deveres no mesmo nível. Privilégios e reponsabilidades recebem a mesma ênfase. Ausência de perfeccionismo e ausência de absenteísmo são tratados com igualdade. Agir com autonomia é o foco. Não há condenação por antecipação.
Não foi isso que vivi. Aprendi a temer em cada decisão a ser tomada, sofria a condenação previamente.
Hoje, algum tempo após ter iniciado uma campanha de autolibertação, ainda me surpreendo sendo legalista. Ainda tenho dificuldade para conceber uma vida conduzida pelos ditames da graça e sem os imperativos da lei.
A graça ainda é fugidia para mim. A única concretude que vejo é o pecado e a lei. A graça ainda não dominou a minha mente e o meu discurso sobre ela ainda tem muito de teórico. Ainda se assemelha aos que ouvi durante todos os anos da minha experiência religiosa. Uma graça mais de definição do que de vivência, mais de discurso do que de experimentação.
Com frequência, maior do que gostaria, sou apanhado me identificando com o judeu Kamimer (YANCEY, 2011, p. 145) que tentando compreender o cristianismo confessou que “como artigo de fé, essa doutrina da salvação pela graça é pouco atraente para mim. Ela tem, segundo me parece, notável desprezo pela justiça e idealiza um Deus que valoriza a fé mais do que a ação [...]”. Confesso que me seria mais fácil se Deus dissesse para a gente deixar essas questões de graça e fé de lado e mandasse que obedecêssemos aos Seus mandamentos.
Sou como aquele aluno que interrompeu a minha aula, em que eu entusiasmado discorria sobre a teoria matemática que embasava o tema abordado, e disse: professor, não é mais fácil dizer como se resolve o exercício?
Eu não sei ser autônomo, quero diretividade. Eu não quero entender, quero fazer. Não sei conduzir a minha vida, quero ser conduzido.
Tenho vontade de romper com o legalismo, mas ele está entranhado na minha natureza religiosa. Faz parte da minha vida, integra o meu eu porque foi introjetado ali com muita força (Rm 7: 21).
Esse é o legado da minha experiência religiosa. Sou legalista.
Até quando?
Nova Andradina, domingo, 06 de novembro de 2011.
Antonio Sales profesales@hotmail.com
Referência
YANCEY, Philip. O Jesus que eu nunca conheci. São Paulo: Vida, 2011.
Realmente tivemos uma formação legalista; é dificil desfazer essa lavagem cerebral. O primeiro passo é esse, o do reconhecimento de que ainda somos legalistas. No começo conseguimos dar o grito de liberdade, mas os pensamentos e as ações ainda conservam fortes marcas do legalismo. Mas você já esta num estágio bem avançado de libertação. Parabens pela coragem!
ResponderExcluirVocê vai sentir uma felicidade muito grande quando sentir que o peso da lei não está mais nos seus ombros, que já foi carregado por alguem. Sentirá a verdadeira liberdade.
ResponderExcluirAsramos
Sales, muito bom você reconhecer que é legalista. Isso é um sinal de humildade. Só vou complementar o que você escreveu: eu sou da mesma cultura religiosa que você e por vezes, enquanto eu fazia o estudo biblico antes de batizar, eu escutei e estudei (na bíblia) que Jesus nos ama assim como nós somos e que Ele perdoa os nossos pecados se o confessarmos com sinceridade. Porém, um tempo atraz participei de uma assembleia, e nessa assembleia estava sendo "discutido" o que iriam fazer a respeito de duas meninas (irmãs) que fizeram algo de errado em relação a doutrina (pecaram). Aí eu ouvi o líder religioso dizer assim: "Quem é a favor de darmos uma disciplina para essas meninas? Levantem a mão!" e o que mais me impressionou é que 98% das pessoas ali presentes levantaram a mão.Fui falar o que eu pensava e logo fui repreendida, agora eu penso: O que adianta nós pregarmos para todos que você é salvo pela graça mediante a fé, que a lei veio para instruir e não para aprisionar, se ainda existem pessoas,líderes que são intoleravel perante o erro? Penso se que nem Jesus nos julgou, como que nós seres humanos pecadores julgaremos os outros?
ResponderExcluirPeço-te Sales que você opine sobre o caso, o que você acha?
Amiga leitora, penso que nessa cultura, em que nossa experiência religiosa se constituiu, a graça é uma teoria e o legalismo é uma prática.
ResponderExcluirNenhum líder ou membro dirá para você que é legalista, isto é, ninguém se assumirá como tal. Se você observar a forma de administrar a igreja, os relacionamentos, as pregações, verá que não existe graça,que ninguém (há raras exceções) vive pela graça ou acredita na graça.
Ali é o império do legalismo com uma faixa onde se lê: graça.
Fica a pergunta: não sabem o que é graça ou querem nos enganar?
Para o amigo Ramos.
ResponderExcluirO difícil é livar-se do "corpo de desta morte" (Rm 7:24, desse cadáver que chamo de legalismo, e que foi atado aos meus lombos, que faz parte dos meus membros. Tenho esperança amigo, de livrar-me dele.